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French, Arts, 1 season, 80 episodes, 18 hours, 58 minutes
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Um dia por semana, em média, veja aqui os nossos destaques no mundo da cultura e das artes. Excepcionalmente, em função da actualidade, esta rubrica pode ter vários destaques.
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Revolução e fim da Guerra Colonial em "Liberdade - Portugal, lugar de encontros"

No ano em que se assinalam 50 anos da revolução de 25 de Abril de 1974, "Liberdade - Portugal, lugar de encontros" é a exposição que reúne o trabalho de 28 artistas contemporâneos oriundos dos países de língua oficial portuguesa.A exposição tem curadoria de João Pinharanda e está patente na sede da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) e no Centro Cultural de Cabo Verde, em Lisboa. A exposição reflecte a multiplicidade de encontros só possíveis com o derrube da ditadura em Portugal e o fim da Guerra Colonial.Pintura, fotografia, escultura, serigrafia, azulejo e tapeçaria são as técnicas utilizadas para a produção de obras que partem de uma circunstância histórica concreta mas que se tornam universais. Lista de artistas expostos:Abraão VicenteAlexandre Farto aka VhilsAlfredo CunhaAna MarchandÂngela FerreiraAntónio OleCarlos Noronha FeioCristina AtaídeEmília NadalEugénia MussaFidel ÉvoraFrancisco VidalGonçalo MabundaGraça MoraisGraça Pereira CoutinhoHerberto SmithJoana VasconcelosJosé de GuimarãesKeyezuaManuel BotelhoMário MacilauNú BarretoOleandro Pires GarciaPedro ChorãoPedro Valdez CardosoRené TavaresVasco AraújoYonamine Moradas:UCCLA - Avenida da Índia, n.º 110 - LisboaCCCV - Rua de São Bento, n.º 640 - LisboaHorários:UCCLA - 8 de fevereiro a 10 de maio de 2024Segunda a sexta-feira, das 10 às 18 horas
2/21/202411 minutes, 33 seconds
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Projecto português que mostra laços entre as mulheres e o mar quer chegar a Cabo Verde e ao Brasil

O projecto "Mulheres do Mar" quer mostrar a ligação profunda entre as mulheres e o mar, dando origem inicialmente a curtos documentários em que diferentes mulheres falam sobre os seus laços com os oceanos, e agora a uma rede de mulheres que trabalham, vivem e pensam o mar um pouco por todo o Mundo. Entre o receio e o respeito, na história contemporânea, as mulheres foram sempre afastadas do mar, sendo muitas vezes postas em segundo plano face a intrépidos conquistadores, pescadores, pesquisadores ou desportistas masculinos. A ONG portuguesa Help Images, através do documentário "Mulheres do Mar", quer mudar esta ideia pré-concebida e dar a conhecer a relação profunda entre as mulheres e o mar."Se calhar o mar nunca foi um assunto só de homens, mas as mulheres não falavam da sua relação com o mar. Não era algo promovido nem era bem visto as mulheres irem ao mar, por exemplo, mas o nosso projecto centrou-se em falar com mulheres que tinham uma paixão pelo mar, independentemente do seu trabalho", explicou Raquel Martins, fundadora e dinamizadora deste projecto, em entrevista à RFI.Assim, entre as 600 mulheres já entrevistadas para este documentário estão biólogas marinhas, investigadoras oceanográficas, pescadoras, surfistas, peixeiras, mas também tradutoras, políticas, professoras ou jornalistas.Para já, este projecto inclui apenas mulheres portuguesas - cerca de 600 -, mas Raquel Martins quer expandir esta rede de mulheres a Cabo Verde, Brasil ou Canadá e, sobretudo, pôr em contacto todas as mulheres que querem falar do mar."Já temos uma parceria com a UNESCO, temos também no Canadá, já falámos com a literacia oceânica daqui e de Cabo Verde e, portanto, também estão interessados em participar. Nós estávamos com dificuldade porque não tínhamos financiamento para ter um CRM [ferramenta de comunicação entre todas as mulheres entrevistadas] e a Secretaria de Estado para a Igualdade de Portugal deu-nos o financiamento para podermos continuar a desenvolver essa ferramenta", explicou.A RFI entrevistou Raquel Martins na UNESCO, em Paris, onde esta activista veio falar sobre o projecto Mulheres do Mar, no contexto da importância da igualdade de género no combate às alterações climáticas e onde afirmou que o lugar das mulheres na preservação do oceanos é essencial."As mulheres são cuidadoras e quando vemos em risco aquilo que nós amamos, quer seja a nossa família, a nossa comunidade ou o nosso oceano, nós trabalhamos afincadamente e com toda a nossa criatividade para protege-lo", concluiu.
2/14/20249 minutes, 30 seconds
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Museu do Homem mostra como descoberta de pinturas e gravuras rupestres abalou o século XX

O Museu do Homem, em Paris, mostra como a descoberta de pinturas e gravuras rupestres abalou o início do século XX não só no âmbito da Ciência, mas também nas Artes e, sobretudo, na maneira como os homens primitivos eram vistos. A comissária da exposição, Egídia Souto, fez uma visita guiada, em exclusivo, para a RFI.  Até ao século XX nada se sabia no Mundo Ocidental sobre a faceta artística dos nossos antepassados. Graças a figuras como Henri Breuil ou Leo Frobenius, e às suas investigações no terreno, a sociedade dos anos 30 começou a interrogar-se sobre não só o que faziam, mas quem eram, o que sentiam e o que interpretavam artisticamente os primeiros homens que desenhavam nas cavernas.Esta mediatização das pinturas e gravuras rupestres e o frenesim que provocou na época está patente no Museu do Homem, em Paris, através da exposição Pre-Histomania que pode ser vista até ao dia 20 de Maio.A comissária da exposição. Egídia Souto, professora de literatura e historia da arte africana na Sorbonne, faz-nos a visita guiada a um passado mais próximo do que imaginamos."É uma exposição que retrato o percurso humano, de homens e mulheres, que acompanharam um etnólogo alemão, Leo Frobenius, que realizou 12 missões no início do século XX e que o acompanharam para fazer os levantamentos, fazer cópias, de grutas ou paredes rochosas onde havia pinturas da Pré-História. Copiaram-nas em tamanho real e trouxeram-nas para a Europa. Desde muito cedo, essas repoduções foram mostradas em mais de 30 cidades", explicou.Na primeira sala, as paredes estão cobertas de grandes desenhos na Vertical e horizontal. É a escala das diferentes grutas exploradas pela equipa de Leo Frobenius. Egídia Souto falou-nos das mais significativas encontradas nas missões ao Zimbabwe, África do Sul e Lesotho."As grutas viajam muito mal. Até ao início do século XX, a pré-história resumia-se a cilex ou a pedras, então Leo Frobenius pediu às equipas para copiarem e era a primeira vez que se via o que havia nessas paredes", disse a académica.Assim, depois de localizar as gravuras ou pinturas, a equipa tinha a tarefa de lá chegar. Muitas destas mulheres e homens, a maior parte muito jovem, tinham de aceder a grutas ou penhascos escalando ou caminhando longos período na floresta ou no deserto. Estas reproduções efetuadas na maior parte das vezes em condições adversas, são hoje o único registo do que existia nessas paredes, já que muitos destes lugares hoje já não existem.Se muitas missões levaram a equipa de Leo Frobenius ou de Henri Breuil para longe, outras fizeram-se na Europa. Uma das mais significativas foi à gruta de Alta-Mira, em Espanha, com os contemporâneos destes académicos a não acreditarem à primeira que os homens primitivos eram capazes de produzir arte com tanto detalhe e delicadeza.Egídia Souto explicou quem era afinal Leo Frobenius e qual o impacto das suas descobertas na Ciência, mas também nas artes e na percepção em geral do início da Humanidade."Leo Frobenius não era um especialista da pré-história, ele vai para África para fazer uma recolha de mitos e, desde logo, ele tem consciência que estes lugares [cavernas e/ou paredes com pinturas e gravuras] têm de ser copiados e preservados porque estão destinados a desaparecer", contou.Um pioneiro, mas também um alemão, algo muito importante temporalmente já que em 1933 Adolf Hitler sobe ao poder e seis anos mais tarde começa a Segunda Guerra Mundial. O estudo do homem primitivo e a anatomia comparada serviram de arma ao regime nacional socialista em Berlim para manipular a opinião pública alemã e comprovar, através de teorias enviesadas, a supremacia da raça ariana.Mesmo se Leo Frobenius foi dos primeiros estudiosos a falar sobre as civilizações africanas, mapeando os usos, costumes, mitos e arte de diferentes povos no continente, de forma a garantir a transparência sobre quem foi este homem e a sua proximidade ou não ao regime alemão, os comissários da exposição pediram uma avaliação independente sobre o envolvimento de Frobenius com os partidários do nazismo."Ele não era simpatizante, mas não se metia em questões políticas", explicou Egidia Souto.As imagens de Frobenius deram a volta ao Mundo e foram mostradas no anos 30 no próprio Museu do Homem, em Paris, mas também no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. Estima-se que mestres do século XX como Picasso ou Miró tenham visto estas imagens e se tenam inspirado para as suas próprias obras. Estão recenseadas atualmente no Mundo cerca de 45 milhões de pinturas e gravuras rupestres, espalhadas por 160 países e há constantemente novas descobertas. Os métodos de estudo hoje estão muito longe dos decalques ou reproduções feitas pelas equipas de Henri Breuil ou Leo Frobenius, com recurso a tecnologia de ponta para estudar estas imagens. No entanto, o objetivo continua a ser o mesmo, não deixar que estas imagens desapareçam.E, para isso, os artistas continuam hoje a interpreta-las, com a exposição a terminar com dois quadros de artistas contemporâneos: o senegalês Abdoulaye Diallo e a portuguesa Graça Morais.A exposição Pre-histomania está patente até 20 de Maio no Museu do Homem, em Paris. 
2/7/202421 minutes, 7 seconds
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"Natália Correia dialoga, reage e subverte a censura salazarista"

O livro "O Vestíbulo do Impossível" de Natália Guerellus já se encontra nas livrarias francesas e percorre a obra de Natália Correia num plano social e político de uma mulher que escreve na segunda metade do século XX , cuja escrita vai emancipar o universo feminino. "Natália Correia foi a escritora mais censurada do regime salazarista", lembra a autora. Poetisa, activista política e defensora dos direitos das mulheres, Natália Correia foi tudo isto e muito mais. Nasceu em 1923 na ilha de São Miguel, nos Açores, marcou a segunda metade do século XX por ser carismática e combativa, por não ter medo de assumir posições que abalaram preconceitos enraizados e desafiaram as convenções.Natália Correia nasceu nos Açores em 1923, aos 11 anos vai viver para Lisboa. Foi jornalista na Rádio Clube Português e colaborou no jornal Sol. Activista política: apoiou a candidatura de Humberto Delgado; assumiu publicamente divergências com o Estado Novo e foi condenada a prisão com pena suspensa em 1966, pela "Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica".Foi publicado pela editora francesa Poisson volant  o livro "O Vestíbulo do Impossível" sobre o género, a literatura e a política na vida ena obra da poetisa portuguesa Natália Correia. O título do livro inspira-se numa estrofe do poema "A defesa do Poeta", no qual Natália Correia escreve:"Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos espero viver dentro de mim". A escritora Natália Guerellus percorre a obra de Natália Correia e levanta a questão: o que significa escrever num regime autoritário? "Natália Correia foi a escritora mais censurada do regime salazarista. Ela não só escreve sob o regime autoritário, mas não deixa de escrever como muitos outros autores e autoras vão fazer. Ela dialoga, reage e tenta subverter essa censura e a perseguição. É uma resistente", descreve a autora brasileira.Há três preocupações que vão acompanhar Natália Correia ao longo da vida, o género, a literatura e a política. "Esta foi uma das formas que ela encontrou para confrontar a ditadura. Talvez tenha sido a forma mais utilizada por Natália Correia até aos anos 70, através das provocações em torno das questões de género. Não só no que diz respeito à mulher, como à sexualidade e ao erotismo. São temas que vão tocar outras correntes como o surrealismo", explica.A escritora lembra que Natália Correia foi uma pioneira na literatura feminina pelo facto de abrir "caminhos para a literatura feminina em Portugal, principalmente no contexto político fechado". "A Natália Correia é um objecto infinito e este trabalho foi um pontapé para que se interessem nela no contexto francês. Não é um trabalho exaustivo, pelo contrário dá uma ideia do que [ainda] pode ser feito. A literatura dela é prolífera, o que pode ser feito e estudado sobre a escrita e a vida de Natália Correia é infinito", acrescenta Natália Guerellus.A Natália Correia é lembrada como uma figura polémica. "Existe um momento na transição da ditadura para a democracia em que ela se engaja politicamente e passa a ter uma presença dentro da Assembleia, mas também foi criticada pela extrema-esquerda, tornando-se uma figura ambígua e foi esquecida. Volta a ser lembrada no século XXI, o espólio dela vai para os Açores e ainda há muito por se dizer sobre a Natália Correia. Ela deixou um marco na história de Portugal, deixou a luta pela liberdade, que é uma marca da escrita dela", concluiu.
1/31/202414 minutes, 23 seconds
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Fado Camões, o novo trabalho de Lina Rodrigues

Lina Rodrigues está de volta. Fado Camões é o novo trabalho da fadista, um álbum que, tal como o nome indica, explora a poesia de Luís Vaz de Camões e que conta com a colaboração do produtor e músico britânico Justin Adams. Há três anos, Lina Rodrigues e o produtor e músico Raül Refree apresentaram ao mundo uma nova forma de “sentir” e tocar o fado, na altura um [trabalho] em torno do repertório de Amália.A 13 de Janeiro, o jornal Le Monde nomeava Lina Rodrigues como uma das 12 personalidades a não perder em 2024. Nesse mesmo artigo sublinhava a intensidade arrebatadora do fado da artista portuguesa que "empresta a sua voz ao poeta Luís de Camões", “o príncipe dos poetas”, como lhe chamou o Télérama, que acrescenta que o "seu fado é encantador". Este álbum será apresentado a 30 de Janeiro, no Teatro da Trindade, em Lisboa. Posteriormente, há uma digressão e essa digressão passará por França, por Paris, pelo Studio de l'Ermitage, a 15 de Março. Começo, precisamente, por lhe pedir para me descrever Fado Camões.Este álbum reúne a lírica de Camões com os fados tradicionais. A lírica de Camões, não são propriamente 'Os Lusíadas', mas também os sonetos. Os sonetos são versos que Camões fez, que tem, a meu ver, a estrutura ideal para os fados tradicionais e, por isso, decidi juntá-los não só pela sua estrutura, mas também pela temática que o Camões utilizou nos seus poemas, que estão completamente ligados à ao fado.Os amores e desamores de Camões…Os amores e os desamores e as questões sobre sobre o mundo. O  questionar-se a si próprio, os amores de infância, os amores de criação, todos esses sentimentos que são actuais.Porquê Luís Vaz de Camões? Já havia esse interesse? Como é que surgiu este olhar diferente para a poesia de Camões?Surgiu ainda em concertos com o Raül Refree. Eu termino um trabalho e começo logo a pensar no que é que poderei fazer a seguir. Queria, sempre quis, que os meus álbuns tivessem um conceito que não fosse só gravar músicas avulso, mas que houvesse um fio condutor que fizesse ligação entre as músicas. No fundo, uma obra e não apenas um disco de música. Quando me deparei com a biografia da Amália Rodrigues, li que Amália considerava Camões o maior fadista que existe e que Camões não era para estar fechado numa gaveta, nem numa estante. Essa ideia ficou aí a ser “cozinhada”?Ficou a ser cozinhada. Fui pesquisar um bocadinho mais sobre a lírica de Camões e percebi que, de facto, tem toda a ligação com com o fado tradicional e com a temática do fado tradicional.O que é que foi necessário para esta adaptação das letras de Camões, dos poemas a esta composição? Vi que tinha trabalhado com a Amélia Muge neste processo.Sim, a Amélia Muge foi o meu braço direito, o meu apoio neste trabalho. Fico feliz por ela pertencer ao meu universo e a este universo da música, que me tem apoiado bastante e acima de tudo, que me tem incentivado a não desistir.Houve momentos em que pensei: se calhar, não consigo fazer isto, não consigo fazer isto sozinha. E a verdade é que houve alguns momentos em que eu consegui fazer sozinha. Um trabalho de introspecção e de sentir ao mergulhar na lírica de Camões. Eu emocionei-me ao ler os versos do Camões e se essa emoção existe no presente, porque não trazer a tradição e o passado dos versos do Camões para o futuro?Em relação à forma, como é que foi feito todo o processo, qual é que foi o critério? Foi, no fundo, um trabalho estrutural de juntar versus de quintilhas, sextilhas, quadras, sonetos… folhear um livro da lírica de Camões e - como sou conhecedora dos fados tradicionais - cantá-los, à medida que vou lendo os versos, assim percebia se havia musicalidade ou não. A forma como os versos encaixavam na estrutura do fado tradicional?Exatamente.Uma das novidades deste álbum é a colaboração com o produtor e músico britânico Justin Adams. O que é que o Justin Adams traz a este disco? Ele traz, também, esta sonoridade da música árabe, porque ele viveu a infância com o pai no Egipto. Traz também as influências africanas… A meu ver, era o produtor ideal, uma vez que eu queria gravar a lírica de Camões e, por isso, passar pelos locais onde ele esteve, na Índia, em África, na Galiza. Foi óptimo trabalhar com ele, tive a oportunidade de fazer também parte, de certa forma, da produção deste álbum. É uma pessoa super generosa e de muito fácil trato, muito bem-disposto.O que é que Justin Adams sabia sobre o fado e sobre a Lina?Ele sabia muito pouco, não sabia muito sobre fado. Aliás, tanto o Justin Adams como o John Baggott assustaram-se um pouco, porque o fado tradicional tem dois acordes, três no máximo… e pessoas com tanta musicalidade, onde a música é tão rica de acordes e harmonias, o fado é uma música simples. Então, a questão deles era, como é que nós vamos adornar, como é que vamos fazer para que seja diferente, tenha musicalidade, seja apelativo e sentimental, emocional. Mas perceberam logo no primeiro dia de estúdio que era possível com apenas dois ou três acordes que se sentisse essa emoção. Foi um trabalho emocionalmente enriquecedor. Já no seu trabalho anterior quebra algumas amarras do fado tradicional. Neste álbum vai nessa continuidade. Há uma necessidade de dar uma nova roupagem ao fado? Não tem a ver com dar a nova roupagem, a ver com a liberdade no canto. Aquilo que sinto quando ouço e quando ouço aquilo que fiz até agora, tanto com o Raul Rëfree como agora, neste álbum. Sinto que é uma necessidade minha de sentir os espaços entre a voz, sentir os ambientes mais do que até quais é que são os instrumentos, se é piano, se não é piano, se é guitarra, se não é guitarra. Acho que eu vejo a música como um todo. Essa é minha necessidade de sentir que estou a cantar à capela muitas vezes, é proporcionada por estes momentos de silêncio e de saborear as palavras.No fado, a importância da palavra é enorme. Por isso, tenho esta necessidade de me sentir livre a cantar.“O que temo e o que desejo” é interpretado com Rodrigo cuecas, como é que chegou a esta a esta colaboração?Eu já conhecia o Rodrigo Cuecas, o primeiro trabalho dele foi produzido pelo Raul Rëfree e tive a oportunidade de ver um concerto dele no museu de Oriente, em Lisboa. Conheci-o pessoalmente e depois isto surgiu naturalmente. Pelo facto de Camões ter escrito em galaico-português, remeteu-me à Galiza e à música tradicional. Pensei no Rodrigo Cuevas, uma vez que ele tem este interesse e é mestre na música folclórica e na música tradicional. Ele é asturiano e, portanto, fazia todo o sentido convidar o Rodrigo Cuevas. Felizmente, ele aceitou. Este poema é a junção de dois poemas, um em português e outro em galaico-português, que eu descobri e que fala sobre o desejo e aquilo de que tenho medo. Acho que fazia todo o sentido fazer uma ligação entre a vida e a morte. E foi uma óptima junção. Foi muito bom trabalhar com ele em estúdio, ele é fantástico.A 13 de de Janeiro, o jornal Le Monde dizia que a Lina era uma das 12 personalidades a não perder em 2024, nesse mesmo artigo, sublinhava “a intensidade arrebatadora do fado da artista portuguesa, que empresta a sua voz ao poeta Luís Vaz de Camões”, a quem o Télérama, também em Janeiro, designou de o “príncipe dos poetas” e acrescentou que o fado da Lina é “encantador”. Como é que olha para esta crítica?Eu não lido muito bem com elogios, fico envergonhada. Obviamente que fico extremamente feliz com todos estes elogios e espero, de facto, merecê-los e continuar a merecê-los e, no fundo, fazer aquilo que sinto. Não faço as coisas a pensar nas críticas, boas ou más, eu faço aquilo que faço porque sinto, porque quero ir por ali, porque é esse o caminho que eu acho que devo seguir e são essas as minhas convicções na música. Estes elogios são, para mim, gloriosos. Fico muito feliz.
1/24/202416 minutes, 2 seconds
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Guiné-Bissau: Escola de música de Nino Galissa quer universalizar a Kora

O músico guineense Nino Galissa quer universalizar o instrumento musical guineense Kora através da escola de música que criou. Com vista a salvaguardar esta herança cultural, o músico tradicional tem vindo a ensinar o instrumento às crianças e jovens do Bairro Militar, em Bissau. Nino Galissa "sonhou" com o projecto de criar uma escola de música de Kora nos últimos anos para garantir a continuidade e a transmissão deste instrumento guineense. Tradicionalmente, o ensino de Kora acontece por transmissão no seio da família, mas a tradição começou a perder-se e Nino Galissa resolveu criar uma escola de Kora e dedica-se à construção do instrumento tradicional guineense.Foi no antigo Império de Gabú que nasceu o instrumento típico da Guiné-Bissau. A Kora existe há mais de 300 anos e na altura os que tocavam as cordas tinham por missão preservar as tradições, iluminar a história, glorificar a realeza do povo.No passado mês de Dezembro, o espaço em construção da escola de música de Nino Galissa estreou com um concerto que juntou no palco jazz português e música tradicional guineense, no bairro militar de Bissau. "Um encontro natural" que juntou a formação artística de Nina Galissa e quatro músicos portugueses de jazz.Nino Galissa nunca imaginou poder inaugurar o espaço da escola de música em construção tão cedo, conta-nos o músico.A Kora é formada por 21 cordas, tem uma caixa de ressonância feita de cabaça e as cordas eram originalmente feitas de pele de antílope. O instrumentista usa apenas o polegar e o indicador para dedilhar as cordas da Kora, enquanto os outros dedos seguram o instrumento.
1/16/20247 minutes, 50 seconds
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Associação de Cinema de Cabo Verde entrega prémios a universitários

A Associação de Cinema Audiovisual de Cabo Verde entregou esta terça-feira, 09 de Janeiro, os prémios monetários aos vencedores do concurso de filmes universitários. Em entrevista à RFI, Júlio Silvão Tavares, o presidente da Associação de Cinema Audiovisual de Cabo Verde sublinhou a importância dos prémios agora atribuídos e de ter no mesmo palco “a geração dos iniciados” e a “geração dos consagrados”, de forma a influenciar os mais novos para a área do cinema e audiovisual. A Associação de Cinema Audiovisual de Cabo Verde entregou esta terça-feira, 09 de Janeiro, os prémios monetários aos vencedores do concurso de filmes universitários referentes ao ano lectivo de 2022/23.Na mesma cerimónia, a ACACV distinguiu os realizadores e produtores Yuri Ceunick, Natasha Craveiro e Samira Vera-Cruz pelos feitos a nível internacional em diferentes festivais.Em entrevista à RFI, Júlio Silvão Tavares, o presidente da Associação de Cinema Audiovisual de Cabo Verde sublinhou a importância dos prémios agora atribuídos e de ter no mesmo palco “a geração dos iniciados” e a “geração dos consagrados”, de forma a influenciar os mais novos para a área do cinema e audiovisual.Desde há oito anos que a Associação de Cinema Audiovisual de Cabo Verde aposta na formação de jovens para a realização de filmes com telemóveis. Pretendemos a democratização do cinema e do audiovisual no país através do telemóvel, tendo em conta as dificuldades em adquirir equipamentos de melhor qualidade.Na formação de 18 horas damos a noção geral de como se desenvolve uma ideia, como se faz um roteiro, como se faz um guião, como desenvolver o guião, como construir planos de filmagens, como gravar som, tudo com telemóvel.Questionado sobre o estado do cinema cabo-verdiano, Júlio Silvão Tavares responde que o financiamento continua a ser o “calcanhar de Aquiles”.O nosso cinema, ainda, continua a dar os primeiros passos. Nós, hoje em dia, já temos a regulamentação do mercado, com a lei do cinema.Mas a nossa produção ainda é incipiente porque ainda temos dificuldades de financiamento que é o "calcanhar de Aquiles" no nosso país. Apesar da importância do cinema e do audiovisual em todo o processo de desenvolvimento do país e do homem, ainda não se vislumbra a possibilidade de ter, pelo menos, um carinho maior por parte dos decisores.
1/9/20248 minutes, 47 seconds
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Reconstruir a história de Angola através da música

A Orquestra Sinfónica de Angola quer recuperar instrumentos tradicionais e resgatar a herança musical do país. Já estão identificados mais de 20 instrumentos, e agora são precisos apoios para superar o desafio. A Orquestra sinfónica de Angola, a OSIA, é o primeiro projecto de orquestra que se dedica à música angolana a partir dos finais do século XV. O grande objectivo é criar música para todos e unir o pais através da cultura e da arte.Neste momento, há também a vontade de promover a reconstituição da história de Angola através da música, com a recuperação de instrumentos tradicionais e com o resgate da herança musical do país. Já estão identificados mais de 20 instrumentos e agora são precisos apoios para superar o desafio.Para conhecer a orquestra, a RFI falou com Flávio Fonseca, um dos mentores do projecto."A sinfonia é um género musical de Angola. Mas não era considerado património imaterial angolano. Por isso é que tivemos a necessidade de desdobrar a OSIA, que é a orquestra sinfónica que se dedica à música clássica ocidental, com a OSINA, uma orquestra que se dedica à música erudita angolana, africana e de ascendência africana"."O aluno mais pequeno tem dois anos. Nós trabalhamos com as crianças, preferencialmente, a nível da Academia. Elas aprendem tudo lentamente e depois escolhem um instrumento. Trabalhamos com jovens adolescentes e com músicos que chegam das igrejas e das comunidades. Vamos ao encontro de quem quer aprender música, e quem quer aperfeiçoar-se numa filosofia de integração social inclusiva vem ter connosco. Nós partimos do princípio de que o método do ensino artístico tem que ser profissionalizante"."Angola é a terra da marimba, mas nós nunca valorizámos a marimba como aconteceu em vários países. Na Guatemala é o instrumento nacional. Aqui também é um instrumento nacional e o nosso interesse é nas partituras de composições para este instrumento".Ouça aqui a conversa. 
1/2/20248 minutes, 39 seconds
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José Eduardo Agualusa escreve biografia de Chivukuvuku para "compreender melhor Angola"

"Vidas e mortes de Abel Chivukuvuku" é o título da primeira biografia escrita por José Eduardo Agualusa e é também a biografia de um dos políticos mais influentes de Angola.Entrarmos na biografia de Abel Chivukuvuku, ex-militante da UNITA e fundador da CASA-CE, é como abrirmos a porta para uma melhor compreensão da história de Angola, da Angola de hoje. Durante três anos, José Eduardo Agualusa entrevistou e investigou, para escrever a biografia do homem que sobreviveu a duas quedas de avião, um atentado, uma tentativa de linchamento. O livro foi publicado recentemente em Portugal.Na entrevista que concedeu à RFI, em Lisboa, José Eduardo Agualusa aborda temas como os desafios que enfrentou para a concretização da obra (editada pela Quetzal), as revelações que se encontram no livro, as reacções à publicação e as próximas eleições Angola.
12/21/202315 minutes, 14 seconds
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Guiné-Bissau: Alfa Cante nomeado estilista do ano dos países da lusofonia

O estilista guineense, Alfa Cante, de 43 anos, foi nomeado estilista do ano dos Países de Língua Portuguesa, na quarta edição da Gala de Globos de Moda 2023, que se realizou em Lisboa, no final do mês passado, e que distinguiu pessoas de várias categorias. Em entrevista à RFI, Alfa Cante contou-nos um pouco do seu percurso no mundo da moda, ele que que ingressou nesta área em tenra idade e mostrou-se feliz com este reconhecimento que para si é mais uma "vitória".Alfa Cante nasceu na cidade de Bula, na região de Cacheu, no norte da Guiné-Bissau, e já passou por vários países, caso da Dinamarca ou de Portugal, onde continuou a aprofundar os seus conhecimentos profissionais. Em 2014, abriu a sua primeira loja na Guiné-Bissau, denominada Fashion Canté. Veja aqui a página de Alfa Cante, bem como as suas criações.
12/20/202312 minutes, 31 seconds
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O universo da escritora Djaimilia Pereira de Almeida analisado num estudo

Recentemente, a editora da Universidade do Minho publicou "Djaimilia Pereira de Almeida: Tecelã de Mundos Passados e Presentes", uma obra disponível on-line coordenada por duas investigadoras, Sandra Sousa e Sheila Khan, socióloga ligada à Escola de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que é a nossa convidada neste programa em que vamos debruçar-nos sobre o universo literário de Djaimilia Pereira de Almeida. Desde 2015, ano em que publicou o seu primeiro livro intitulado "Esse Cabelo", esta escritora portuguesa de origem angolana nascida em 1982 em Luanda explora na sua literatura a questão da identidade dos afro-descendentes de Portugal, do racismo e da narrativa em torno do passado colonial de Portugal.Na obra colectiva "Djaimilia Pereira de Almeida: Tecelã de Mundos Passados e Presentes", investigadores da área da literatura, dos estudos culturais e da sociologia estabelecidos em Portugal mas também fora, analisam as obras da escritora, nomeadamente "Luanda, Lisboa, Paraíso" ou ainda "Maremoto", um livro sobre o percurso de Boa Morte da Silva, arrumador de carros em Lisboa que, no passado, foi combatente dos comandos guineenses sob a bandeira portuguesa durante a guerra de libertação. Foi sobre este livro que a investigadora Sheila Khan reflectiu e escreveu na obra dedicada à escrita de Djaimilia Pereira de Almeida. Para a socióloga,"a sua literatura não é apenas escrever. É sim um método de análise, um método de investigar, mapear as várias realidades de várias personagens que mostram bem o que são as nossas sociedades europeias pós-coloniais".Ao situar a obra de Djaimilia Pereira de Almeida num contexto em que outras vozes como a de Luísa Semedo, Patrícia Moreira, Paulo Faria, Joaquim Arena e também Lídia Jorge, também enunciam as realidades descritas pela jovem escritora, Sheila Khan considera que a sua obra aponta as omissões e as ausências da sociedade portuguesa para com a sua população afro-descendente."É a grande ironia e a grande contradição do projecto pós-colonial da sociedade portuguesa foi de não ter conseguido ainda integrar muitos dos seus sujeitos da experiência colonial que depois vêm para Portugal, numa experiência já pós-colonial, e essencialmente não terem conseguido integrar aqueles que são a experiência da segunda geração que são os 'afro-peus', os afro-descendentes, que muitas vezes ainda não são tidos e considerados como cidadãos europeus e, neste caso, cidadãos portugueses, e são colocados numa situação de limbo", considera Sheila Khan.Na óptica da estudiosa que dá conta de alguma ausência de bases de compreensão das jovens gerações relativamente à sua história e ao seu presente, "as múltiplas Djaimilias do nosso tempo são necessárias para darem aos nossos jovens, à nossa geração actual, um olhar atento, um olhar inteiro e um olhar instrutivo, informativo, para perceber o que foi o 'antes', o que é o agora e o que está por vir (...) Djaimilia Pereira de Almeida tem em si uma cidadania literária. É através da literatura e da ficção que ela constrói este sentido de uma cidadania de todos e para todos".
12/12/202328 minutes, 10 seconds
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Pianista Máximo Francisco apresenta os seus "Greatest Hits" em Paris

O pianista e compositor português Máximo Francisco actuou na terça-feira, 28 de Novembro, no Sunset, em Paris. Fomos descobrir o seu disco de estreia intitulado "Greatest Hits", reúne composições que o pianista escreveu entre os 9 e 19 anos. Máximo Francisco, 20 anos, acaba de publicar o primeiro álbum "Greatest Hits". Um disco que engloba 12 títulos que escreveu entre os 9 e 19 anos. São dez anos da vida do pianista e músicas que compôs como reflexo que ia acontecendo à sua volta. "Passados tantos anos de estar a compô-las, percebi que gostava de as mostrar ao mundo e originou este primeiro álbum", explicou-nos Máximo.Ao longo dos últimos anos, "houve músicas que se perderam", que não ficaram na memória de Máximo Francisco. Este primeiro álbum "acaba por ser uma selecção natural", explica o pianista, acrescentando que "houve músicas que não ficaram na memória, significa que não gostei tanto delas, mas guardei outras músicas para lançar no futuro".A primeira música do álbum, "mártires", foi composta aos nove anos. Neste álbum "nota-se o progresso entre esta primeira música, que compus aos nove anos e as que compus depois, aos 19. Dez anos é metade da minha vida e acaba por ser os 'Greatest Hits' da minha carreia, que está a começar", explica.Máximo Francisco estudou piano clássico e composição no Conservatório de Lisboa até aos 18 anos. Nos últimos dois anos está a estudar composição de jazz, em Roterdão. O pianista descreve que o jazz foi sempre algo que foi aprendendo sozinho em casa; "É uma paixão que tenho desde muito cedo. Gosto de jazz e de música clássica, mas gosto de muitos outros géneros de música. Este álbum tem todas essas influências e passados estes anos percebo as diferentes influências"."Quando estou a compor, estou sozinho, estou mais focado e concentrado. Quando estou a fazer um concerto trata-se de mostrar, de ter um momento com o público e de partilhar um momento íntimo. Nos meus concertos gosto de improvisar. É uma espécie de híbrido entre a composição, a performance e a interpretação. Está tudo misturado", descreve.A maneira como Máximo Francisco compõe é, como nos conta, "muito natural" porque acredita que a criação é uma coisa que se faz por reflexo; "Ia experimentando, não gostava do que estava a ouvir. Ia tocando e mudando até pensar 'é isto que estou a sentir'".Até ao final deste ano, Máximo Francisco vai lançar dois singles; o tema "Verdes Anos" e "Malha". Em 2024, o pianista e compositor português vai lançar um novo EP, ainda em processo criativo, um álbum dedicado ao planeta terra e às questões climáticas. 
12/10/202320 minutes, 28 seconds
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A liberdade de Tchalé Figueira e a construção de "Breve História Colonial e Outras Memórias"

Um retrato do mundo onde o discurso visual se assume como comprometido e denunciante, é uma definição possível para o conjunto de trabalhos que Tchalé Figueira reúne em "Breve História Colonial e Outras Memórias". Na exposição que apresenta no Centro Cultural de Cabo Verde, em Lisboa, até 12 de Janeiro, Tchalé Figueira não deixa nada por dizer e obriga o fruidor a lidar com uma narrativa que nos escancara incoerências e atrocidades. No trabalho de Tchalé Figueira, os corpos disformes reclamam e alertam, a palete de cores enfatiza como as atrocidades do passado ensombram o presente.Na exposição do artista cabo-verdiano, o colonialismo, o racismo, o nazismo, a Igreja ganham protagonismo nas telas; a amnésia colectiva não pode apagar a desumanidade.A RFI falou com Tchalé Figueira sobre "Breve História Colonial e Outras Memórias".Veja aqui algumas das obras do artista cabo-verdiano que estão em exposição no CCCV em Lisboa:
12/9/20239 minutes, 31 seconds
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Kriolish quer levar o crioulo ao mundo

A Kriolish nasce, em 2019, pelas mãos dos cabo-verdianos Edmar Gonçalves e Suely Neves. A plataforma digital que começa por ser "dicionário urbano" é hoje uma ferramenta indispensável para a população cabo-verdiana/americana que quer aprender o crioulo. Edmar Gonçalves, co-fundador da Kriolish, fala da utilidade da plataforma e dos projectos futuros, nomeadamente as aulas de crioulo on-line. RFI: Como é que surge a ideia de criar o Kriolish?Edmar Gonçalves, co-fundador da Kriolish: O projecto nasce em 2019 e, na altura, a ideia era criar um espaço online, onde todos os falantes de crioulo podem-se entrar, com uma conta cadastrada, e partilhar expressões com valor histórico e nacional. A Kriolish começou por ser um "diccionário urbano" para partilhar a diversidade da nossa língua.Que utilidade tem esta plataforma para a diáspora cabo-verdiana?O que observamos é que as pessoas procuram um nível de conexão com as raízes e as expressões que encontram no nosso website dão-lhe acesso à cultura cabo-verdiana. Recentemente, lançamos o "translaition", um dicionário de traduções de inglês para o crioulo, uma ferramenta para a população cabo-verdiana/americana que quer aprender o crioulo.Quem é que vos procura e contribuiu com essas expressões crioulas?São os nativos de Cabo Verde, aqueles que falam crioulo desde a nascença. Todavia, as pessoas que pesquisam as expressões [ no website] são do mundo inteiro. Quando analisamos as visitas que são feitas ao site, apercebemo-nos que temos visitantes da Holanda, de Portugal, do Luxemburgo, de Cabo Verde e dos Estados Unidos.A plataforma tem em conta a existência de várias variantes do crioulo cabo-verdiano, disponibilizando as traduções nas variantes do Barlavento e do Sotavento...Sim, exactamente. Cada ilha tem a sua variante. Então a forma mais eficiente que encontramos, para dar essa ideia de diversidade da nossa língua e, ao mesmo tempo, respondermos aos utentes, foi encontrar uma variante [do Crioulo] mais representativa nas ilhas do Barlavento e outra do Sotavento.A Kriolish também se tem revelado útil para pessoas que ocupam cargos públicos e que procuram envolver-se com a comunidade cabo-verdiana local, Como é feita essa inter-acção?Sem dúvida. Especialmente, na cidade onde eu vivo, em Brockton, no estado do Massachusetts, 70% da população é cabo-verdiana. Então, se a pessoa quer ser eleita tem de interagir com a população local. A forma mais efectiva para chegar a esse público é através do crioulo.A Kriolish quer providenciar esse serviço às pessoas que ocupam cargos públicos, mas também às pessoas que prestam serviços de emergência. É preciso lembrar que nem todos os cabo-verdianos, que residem nos Estados Unidos, falam inglês fluentemente. Essas pessoas também procuram aprender a falar crioulo de forma a prestar os melhores serviços.Têm encontrado algumas dificuldades na implementação deste projecto?Temos muitas ideias, mas a falta de financiamento, por vezes, torna tudo mais difícil. Outra dificuldade é a divulgação do projecto.O vosso objectivo é facilitar o acesso à língua cabo-verdiana?Sim, um  acesso ao crioulo a qualquer hora e de qualquer local no mundo. Por isso, estamos a criar uma plataforma que é de natureza tecnológica. Hoje a tecnologia está presente nas nossas vidas e em todas as actividades. É importante ter uma presença no mundo digital para abrangermos mais pessoas.O facto da língua cabo-verdiana ainda não ser uma língua oficial e de não existir, de facto, uma padronização na escrita do cabo-verdiano, representa alguma dificuldade para as traduções?Um dos pedidos dos utilizadores da nossa plataforma é a tradução do crioulo para o inglês. Nesses casos, a dificuldade reside no facto de não existir um critério único na escrita do crioulo. No entanto, já estamos a pesquisar, mesmo em termos tecnológicos, algumas soluções para resolver esse problema.Outros serviços serão lançados em breve?Vamos lançar aulas on-line. Essas aulas já estão gravadas e  estão disponíveis a qualquer hora e de qualquer lugar.Essas aulas serão gratuitas?Umas serão gratuitas, outras terão de ser pagas. Estamos a trabalhar com professores que já dão aulas de crioulo e essas aulas serão dadas na aplicação Zoom.A Kriolish foi co-fundada por Edmar Gonçalves e Suely Neves. Actualmente, a equipa é composta por cinco pessoas que residem em Cabo Verde e nos Estados Unidos. A ideia, no futuro, é alargar a equipa?Precisamos de mais engenheiros, mais pessoas para trabalhar no marketing e criar novos conteúdos. Outra dificuldade que temos é a falta de informação sobre os nossos utilizadores e precisamos de pesquisar para compreender melhor as necessidades do nosso público-alvo.
12/6/20236 minutes, 42 seconds
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“Cesária Évora, a diva dos pés descalços” estreia em França

Estreia, esta quarta-feira, 29 de Novembro, nas salas de cinema francesas, o filme “Cesária Évora, a diva dos pés descalços” realizado por Ana Sofia Fonseca. O filme conta com imagens inéditas e testemunhos dos que conheceram Cesária Évora.  Em entrevista à RFI, Janete Évora, neta da cantora cabo-verdiana, fala numa “retrospectiva à vida familiar”, que a levou inclusive a perceber o seu diagnóstico de bipolaridade. “Uma viagem ao meu passado, aumentando a minha conexão com a minha ancestralidade… o respeito por ela [Cesária Évora]”, acrescenta Janete Évora.O filme “Cesária Évora, a diva dos pés descalços” é uma viagem à intimidade da cantora, viagem essa que mostra igualmente questões como a solidão e o álcool. A neta de Cesária Évora sublinha que, nos tempos que correm, é importante “mostrar as vulnerabilidades e tocar nas feridas”. Da conta do desconforto de entrar na intimidade, mas “ao mesmo tempo é libertador. Ela [Cesária Évora] com todos os problemas que teve, conseguiu ser aquilo”, conseguiu singrar. José da Silva, agente de Cesária Évora, deu um contributo importante para a construção deste filme, tanto com o seu testemunho como nas cassetes repletas de imagens que gravou ao longo das tournées. “É um documentário muito bem feito, focado na pessoa da Cesária”, evidencia José da Silva que acrescenta que “gostou muito do resultado”. Mesmo assim, não esconde a emoção de ver e rever o documentário: “é sempre difícil! Já vi pelo menos umas dez vezes e de cada vez que vejo fico emocionado. Estão ali todos estes anos de trabalho, momentos formidáveis e também momentos tristes e difíceis.” O filme “Cesária Évora, a diva dos pés descalços” realizado por Ana Sofia Fonseca chega esta quarta-feira às salas de cinemas francesas, a França que era “a segunda casa” de Cesária Évora.
11/27/202311 minutes, 11 seconds
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Carlos G. Lopes celebra "a riqueza" da dupla cultura no álbum "Azul"

O cantor franco-cabo-verdiano Carlos G. Lopes lançou este mês o seu novo álbum "Azul" e em entrevista à RFI falou sobre a importância de cantar pela primeira vez em francês e crioulo, a saudade e a presença cada vez maior de Cabo Verde em França. Carlos G. Lopes descreve o seu novo álbum "Azul" como fogo-de-artifício, uma mistura de jazz e R&B com os sons tradicionais de Cabo Verde como o funáná, criando "uma nova onda", diferente do seu primeiro álbum "Kanta Pa skece". Uma grande diferença é também cantar pela primeira vez em francês, língua que é sua desde os 10 anos, altura em veio viver para França."Eu tinha vontade de fazer um disco onde pudesse cantar tanto em francês como em crioulo português e também criar algo novo, numa nova onda, porque o meu primeiro álbum era algo mais acústico. Este álbum foi escrito durante a pandemia, tanto em França, como em Lisboa, como em Santiago, em Cabo Verde. A coisa incrível é que a maior parte da música em francês foi escrita nos países onde não se fala francês, ou seja, Portugal e Cabo Verde", explicou em entrevista à RFI.Cantar e escrever nas duas línguas é natural para quem tem memórias nos dois países."Para mim é natural escrever em francês e tenho emoções e lembranças em francês, tal como tenho também lembranças em português e em crioulo, que é a minha língua de infância. O meu primeiro álbum foi só em crioulo e agora sinto falta de misturar estas duas emoções e o próximo álbum vai ter mais língua portuguesa", indicou.Para o cantor, esta dupla cultura é "uma riqueza"."É uma riqueza esta dupla cultura porque tenho a possibilidade de pensar e analisar as coisas em várias línguas. Eu gosto de falar português, de falar francês, inglês ou espanhol, é algo muito bom para a abertura do espírito. Quando estou em França sinto falta de Santiago ou em Lisboa", declarou.O primeiro avanço deste álbum é "Sodadi", um tema maioritariamente cantado em francês, com o vídeo a ter sido gravado em Cabo Verde, na aldeia de onde é originário o músico."Eu tinha vontade que o primeiro clip do álbum Azul fosse feito onde eu nasci, na ilha de Santiago, numa zona que se chama Pico Vermelho e era algo importante para completar a minha caminhada porque a música é mais em francês, há só um pouco em crioulo. E eu queria mostral como num postal que eu canto em francês, mas é daqui que eu venho e a importância da mistura da língua e da poesia. Algo que é totalmente natural", disse."Azul" é também uma ponte entre o passado, o presente e o futuro da música de Cabo Verde com participações de Zeca Di Nah Reinalda, conhecido como o Rei do Funáná, e o rapper Takinuz. Para Carlos G. Lopes o contributo dos artistas na diáspora serve também para enriquecer a histórica da música cabo-verdiana."O que os artistas me dizem é que os artistas da diáspora estão a transformar a música de Cabo Verde e eu acho que não é algo novo. A diáspora transforma o que é tradicional. Há mais de 40 anos que é assim, com quem estava em Lisboa ou em Roterdão. Nessa altura já havia muitos grupos e artistas cabo-verdianos que ouviam outros estilos de música como rock, jazz e tocar com músicos de outras origens", contou.Em França, a música cabo-verdiana tem feito uma grande progressão especialmente graças ao trabalho de Cesária Évora e das suas equipas que mudaram a imagem do país em terras gaulesas."Não sei se os artistas cabo-verdianos têm consciência do trabalho da Cesária Évora e da sua equipa porque quando cheguei a França com 10 anos, ninguém sabia onde era Cabo Verde a Cesária fez uma trabalho fantástico que dá vontade às pessoas de descobrirem o país", declarou.No dia 01 de Dezembro, Carlos G. Lopes vai fazer o lançamento ao vivo do seu álbum, em Paris, no Studio Ermitage, esperando actuar já em 2024 em salas em França, Portugal e Cabo Verde.
11/22/202316 minutes, 47 seconds
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Alice Ripoll mostrou em Paris uma “zona franca” para a dança e o pensamento

A coreógrafa brasileira Alice Ripoll apresentou as peças ZONA FRANCA e aCORdo no Festival de Outono, em Paris. A RFI conversou com esta “cronista" da dança contemporânea brasileira que reivindica uma “zona franca” no mundo da dança para “devorar a vida” e acordar o público. A coreógrafa brasileira Alice Ripoll tem criado uma “zona franca” para a dança, um espaço de liberdades e questionamentos estéticos, sociais e políticos. ZONA FRANCA é precisamente o nome do seu mais recente espectáculo, que veio apresentar ao Centquatre, em Paris, de 9 a 11 de Novembro, com a companhia Suave, no âmbito do Festival de Outono. Um evento que também foi buscar para o seu cartaz uma outra peça de 2017, aCORdo, criado com a outra companhia que Alice Ripoll dirige, a REC. Os dois espectáculos mostram o fervor criativo de bailarinos oriundos das favelas do Rio de Janeiro e espelham as aspirações da juventude num Brasil de desigualdades.Em ZONA FRANCA, as danças urbanas e populares do país cruzam-se com a dança contemporânea, mas há também teatro e canto. Vários intérpretes em palco entregam-se a uma festa com balões e confettis, um ritual que é uma caixa aberta de ritmos e emoções. Mais uma vez, este é um espectáculo polissémico, feito de camadas e significados, a começar pelo título.“A ‘Zona Franca’, ‘Free Zone’ ou ‘Zone Franche’ tem que ter uma busca pela liberdade, em que as regras estão menos rígidas, em que a gente pode dar mais espaço para os sons, para as livres associações, com mais liberdade de escolha. Eu busco, com os intérpretes, que eles aumentem a liberdade de serem mais coisas: de serem dançarinos, mas também actores, para ampliar a sua liberdade de expressão”, descreveu Alice Ripoll à RFI no final de uma das representações no Centquatre.Esta é ainda uma “zona franca” em que se questiona a própria questão da autoria, em tempos vorazes guiados pela velocidade-luz da internet. É como uma “zona de livre comércio”, sem impostos, em que a juventude pode reinventar a dança e a música a partir de trocas e apropriações de conteúdos que lhes chegam pelas redes sociais/virtuais.E é, também, uma “zona franca” em que não há fronteiras entre dança, teatro, música e performance. “Eu gosto de criar uma expressividade que englobe mais coisas do que só a dança, do que só a coreografia. É o corpo como um todo se expressando, junto com o pensamento, a fala e as ideias”, continua Alice Ripoll.No espectáculo, há momentos de êxtase colectivo, em que os corpos se libertam e outros em que os bailarinos se devoram. É uma fome e uma ânsia de viver que acaba por ter algo de profundamente político num Brasil que se reiventa.“Tem a ver com o momento em que o trabalho foi criado. A gente estava numa transição do governo Bolsonaro para o governo Lula. A gente estava num impasse, num momento em que o mundo se voltou para o Brasil para entender o que é que aconteceria nessa transição. E a gente perguntou-se ali, individualmente e colectivamente: ‘Onde é que está o desejo? Onde é que está o desejo de viver? Essa Nação vai escolher pelo desejo de viver? Vai optar pela vida?’ E a vida é nesse sentido de devorar, de trocar de pele, de poder jogar uma coisa fora para nascer outra e também devorar no sentido de desejo mesmo”, sublinha a artista.Mais do que coreógrafa e encenadora, Alice Ripoll é uma “cronista” da dança que se inventa todos os dias no Brasil. O seu trabalho consiste em criar composições a partir dos esboços que os bailarinos lhe apresentam, numa espécie de associação livre de gestos que ela - antiga estudante de psicanálise – transcreve para pôr a dança a olhar para dentro: a tal zona franca onde os bailarinos transformam as suas experiências e memórias em imagens e movimentos.“As pessoas no grupo são muito diferentes. Tem uns que vieram do passinho. Tem uns que vieram de outros lugares. Eu gosto de deixar o espaço aberto para eles trazerem. Eles mostram-me as coisas que estão ouvindo, os estilos novos que estão vendo e aprendendo. Eles são umas antenas do que está a acontecer no Brasil. Eu vou fazendo uma composição a partir de coisas que eles trazem. Eu gosto desse aspecto bem cronista de mostrar o que está sendo feito ali no Brasil pela juventude e pela galera que está inventando dança. No Brasil, inventa-se uma nova dança a cada dois meses!”, explica Alice Ripoll.Ainda não se defina como militante, as suas peças são políticas. A violência racial e política lê-se, por exemplo, nos movimentos lentos e contemplativos do espectáculo aCORdo, uma peça em que o público é convidado a despertar do conforto de ser público e a participar na performance.  Em Zona Franca, a explosão de energia e de alegria colectiva esconde, nas entrelinhas, uma fuga urgente e descarada a qualquer tipo de opressão e, talvez por aí, uma forma de resistência política.As peças aCORdo e ZONA FRANCA estiveram, em cartaz, no Festival de Outono, em Paris, entre 8 e 12 de Novembro. Em 2021 e 2022, Alice Ripoll também foi convidada a apresentar a peça Lavagem no mesmo festival.
11/13/202310 minutes, 11 seconds
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Portuguesa Lídia Jorge após prémio literário em França com "Misericórdia"

A escritora portuguesa Lídia Jorge foi consagrada em França a 9 de Novembro de 2023 com o prestigioso Prémio Médicis de romance estrangeiro com o livro "Misericórdia".Um prémio obtido ex aequo com a sul-coreana Han Kang para "Impossibles Adieux".Um galardão que é atribuído desde 1970 e que, pela primeira vez recompensa um escritor lusófono, e que foi, pois, para esta nativa do Algarve, que na sua trajectória viveu também em Angola e em Moçambique.  "Misericórdia" é um livro que, na sua versão original, publicada no ano passado em Portugal, vai na sexta edição sob a chancela da D. Quixote.A versão francesa foi lançada em Setembro passado pela editora Métailié, com tradução de Elisabeth Monteiro Rodrigues.A autora reagindo à atribuição desta recompensa alega que tal a ajuda a dizer a si própria  que tudo o que tem feito tem algum sentido. Lídia Jorge afirmava à rfi estar muitíssimo feliz com o presente que a cultura literária francesa lhe estaria a dar.A RFI que tinha recebido em Setembro passado a autora, precisamente, para o lançamento desta versão francesa de "Misericórdia".Propomos-lhe ouvir a reacção da autora e de voltar a essa entrevista de Lídia Jorge. A escritora portuguesa que nos brindou, mesmo, com a leitura do início do seu livro. Uma obra já muitas vezes recompensada, e que agora obtém este prestigioso prémio em França: o Médicis de romance estrangeiro.
11/10/202319 minutes, 16 seconds
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Lusafrica celebra 35 em Paris com estrelas da editora e público entusiasta

A Lusafrica trouxe até Paris algumas das suas maiores estrelas para celebrar os 35 anos desta editora fundada por José da Silva. A RFI esteve presente e falou com os talentos cabo-verdianos e ouviu também o público. A editora Lusafrica celebrou em clima de festa os seus 35 anos de actividade. Em Paris, onde esta editora foi fundada, encheu na semana passada uma das salas da Belleviloise e trouxe até à capital francesa algumas das suas maiores estrelas. Entre mornas, funaná, ritmos latinos, mas também música urbana, a Lusafrica não esqueceu o passado, tendo nascido como motor para o lançamento da carreira internacional de Cesária Évora, mas quis apontar o caminho para o futuro.Uma noite que correu muito bem, segundo a cantora Lucibela, com a França a ser sempre uma porta para o Mundo para o talento de Cabo Verde."Correu muito bem, acho que o público estava em alta a participar e a festejar, espero que fiquemos juntos por muito tempo. Desde a nossa Cesária temos esta oportunidade de mostrar o nosso talento de Cabo Verde e outros géneros aqui em França e este país é uma porta daqui para o Mundo", disse Lucibela.A percorrer França está actualmente Ceuzany, cantora que gravou uma música com o cantor francês Christophe Mae, e que está actualmente em tourné por terras gaulesas."Para mim é uma honra estar aqui e representar a Lusafrica. O público recebeu-nos com uma energia enorme. Eu não estava à espera do convite do Christophe Mae, os franceses estão a receber-nos de braços abertos", declarou Ceuzany.Com um novo álbum lançado este ano, Elida Almeida também esteve presente nesta festa em Paris, não esquecendo a importância da música na construção de um futuro melhor para Cabo Verde e a importância que a música tem para o país."Cabo Verde sempre teve um lado de composição crítica desde B.Leza a Manuel de Novas e a compositores de Santiago e as pessoas reúnem um bom ritmo a uma mensagem que faz reflectir quando as pessoas chegam a casa", disse Elida Almeida.A festa continuou até de madrugada e com todos os presentes a desejarem que esta editora continue a fazer a ponte entre Cabo Verde e França.
11/8/20237 minutes, 57 seconds
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Viagem na 'Saudade' sentida e cantada por Kavita Shah em "Cape Verdian Blues"

Hoje, mergulhamos no universo musical de Kavita Shah, jovem cantora, compositora e estudiosa de etnografia musical de Nova Iorque, com origens indianas. Formada em Harvard e fluente em 9 línguas, nomeadamente o francês, o espanhol, o português e o crioulo de Cabo Verde, Kavita Shah poderia ser descrita como uma pessoa guiada pela curiosidade. A sua curiosidade por outros mundos e outras culturas, uma curiosidade alimentada por uma infância numa família de editores indianos estabelecidos na Big Apple, vai levá-la muito nova a aprender o piano e a cantar num coro, antes de se impregnar das sonoridades dos lugares que vai conhecendo mais tarde, como o Brasil ou ainda Cabo Verde.Cerca de 10 anos depois do primeiro disco com sonoridades jazz intitulado "Visions" e depois também de participar noutros projectos, Kavita Shah acaba de lançar nestas últimas semanas o seu novo disco, "Cape Verdian Blues", que como o nome indica é o fruto das suas andanças em Cabo Verde.Antes de falarmos deste trabalho cuja musa é Cesária Évora e aquela suave nostalgia a que chamamos "saudade", decidimos fazer o percurso que levou Kavita Shah até Cabo Verde, porque o que interessa não é só o destino, é também a própria viagem. Uma viagem cuja primeira etapa foi o"Young People's Chorus of New York City", o coro infantil de Nova Iorque, quando tinha dez anos. Uma escolha "natural", conta Kavita Shah."Eu acho que foi uma coisa muito natural. Isso vinha de mim. Eu soube do coro através da minha escola que tinha um programa de música e o meu professor tinha dado um 'flyer' com informações para esse coro. Cheguei a casa, dei para os meus pais e todos os dias perguntava aos meus pais 'já ligaram ao coro? Já marcaram entrevista?' e eles respondiam 'ainda não, ainda não, vou fazer'. Eu, aos dez anos, não podia esperar mais e liguei. Acho que era uma vontade muito grande dentro de mim, era uma coisa de que precisava", conta a artista.Ao recordar o seu primeiro contacto com a lusofonia, a cantora diz que foi através de uma canção brasileira aprendida na escola que, meses depois, acabou por cantar num palco, durante uma viagem a Goa. Era ainda uma menina."Os meus professores eram muito abertos ao mundo (...) uma canção que nos ensinaram foi samba de Orfeu de Luís Bonfa. Eles escreveram num português de maneira muito visível em inglês com 'K', 'Kero viver, Kero sonhar'. Então, tinha aprendido esta música, logo antes de ir ao coro, tinha 9 anos, e naquele verão eu fui à Índia com a minha família, para as férias (...). A minha família é de Mumbai, então passamos férias em Mumbai e fomos quatro ou cinco dias a Goa. Foi o meu primeiro contacto com um lugar lusófono (...). Como eu tinha conhecimento daquela canção, num barco turístico, eu subi ao palco onde estava um guitarrista e eu disse 'olha, sei cantar uma canção em português. Posso cantar contigo?'. Eu tenho uma foto daquela noite, comigo cantando (...).É muito mágico pensar nisso porque eu tinha apenas 9 anos", lembra a cantora.Anos depois, então estudante de literatura, Kavita Shah, vai morar uns tempos para o Brasil. Esse período vai marcar uma viragem em vários sentidos, nomeadamente porque é nessa altura que vai assistir a um espectáculo que vai mudar a sua vida, um concerto de Cesária Évora."A Cesária veio cantar num festival de consciência negra no Brasil que decorria ao lado da minha casa. Eu já conhecia umas músicas dela, gostava muito, sentia que era interessante e diferente das outras músicas lusófonas que conhecia na altura, sobretudo brasileiras. Vê-la ao vivo, depois, foi outra coisa. Ela era uma artista muito especial, ela era muito confortável com ela mesma, estava descalça, bebendo Uísque, fumando, não estava a sorrir, não estava a dançar, não estava a fazer entretenimento. Ela só cantava do coração. Eu senti a autenticidade dela, a humanidade dela e ver uma mulher negra, forte, com aquela postura séria era para mim muito impactante", recorda a cantora que daí por diante, vai querer conhecer melhor as sonoridades de Cabo Verde.Uma música cantada por Cesária Évora, 'Sodade' vai tocar numa corda sensível de Kavita Shah que vai incluir esse título no primeiro álbum "Visions" em 2014, bem como no seu novo trabalho "Cape Verdian Blues"."'Sodade' virou um hino pessoal para mim (...), porque, só me dei conta disso muitos anos depois, acho que a sensação de saudade é uma sensação universal para quem, como eu, vive dentro de várias culturas, vive num espaço entre as coisas. Eu cresci com um sentimento de saudade na minha casa, que era uma saudade de um lugar que já não existe, a Índia dos meus pais, dos meus avós, que já não tinha aquela conexão (...). Depois, eu perdi o meu pai, eu tinha só 18 anos, ele era muito jovem, ele tinha só 46 anos, e logo depois, os meus quatro avós faleceram e eu não tenho irmãos, então foi muito súbito que eu perdi quase toda a minha família. Tinha saudade não só da cultura, mas também da minha vida", confessa a artista.O sonho de conhecer Cabo Verde acontece finalmente em 2016. Aí, vai conhecer a família musical de Cesária Évora, nomeadamente o guitarrista Bau."Fui para fazer uma pausa da vida de Nova Iorque. Fui lá para conhecer, com uma mente aberta (...). Foi por coincidência que logo depois que eu cheguei, conheci o Bau que era não só director musical da Cesária Évora mas é um dos guitarristas mais importantes da tradição, sobretudo a Morna (...). Ele transmitiu isto para mim e nós íamos desenvolvendo um trabalho juntos, mas foi só para o prazer, para trocar ideias, para cantar juntos. Eu ia para a casa dele e passávamos horas a falar sobre música, a tocar várias coisas, a explorar", recorda Kavita Shah ao contar que foi um amigo que sugeriu a ideia de fazer um disco a partir das suas sessões de pesquisa com Bau.Para além do conhecido guitarrista, "Cape Verdian Blues" também conta com os contributos dos artistas cabo-verdianos Miroca Paris e Fantcha, este disco colorindo com os tons da 'Morabeza" músicas vindas de outros horizontes, como "Flor de Lis" do artista brasileiro Djavan e "Chaki Ben", uma canção de embalar tradicional indiana. "Gosto muito de cantar esta canção com pessoas de outras culturas porque é uma canção fácil, dá para qualquer música entrar naquilo. É uma maneira de compartilhar a minha cultura, a minha família, com qualquer músico com quem esteja a trabalhar", diz a compositora.Com 12 faixas, o disco tem estado a ser apresentado em concertos nos Estados Unidos e em Portugal, antes de seguir para Cabo Verde. Kavita Shah vai actuar nos dias 10 e 11 de Novembro na Cidade da Praia e no dia 17 no Mindelo antes de cantar no dia 2 de Dezembro na sala do "Bal Blomet" aqui em Paris.Apesar de um ritmo "um bocadinho intenso, com muitos concertos", Kavita Shah tem outro horizonte, longínquo, mas que guarda num cantinho da mente: um disco que gravou há tempos com o seu quinteto. As sonoridades são jazz, com sabor a viagem."É um disco com muita inspiração da Índia e de uma viagem que eu fiz às aldeias ancestrais que estão na costa de Gujarate. Tive a sensação, quando eu fui lá, que eu já conhecia estas aldeias, mesmo que fosse a primeira vez que eu estava a ver, que estava conhecendo este lugar (...). Tive a sensação de que o meu caminho para conhecer a "minha saudade", para conhecer as minhas raízes, era normal não ir directamente de Nova Iorque para a Índia. Era normal para mim, ir através do Brasil, através de Cabo Verde, através de Portugal, através da França, para finalmente chegar lá. Era uma maneira de reconstruir a sensação de lar, a sensação de casa", diz a artista referindo contudo que, para já, não perde o foco. "Acho que vou precisar limpar um pouco a mente antes de mergulhar no mundo desse outro disco. Agora, estou 100% focada na música cabo-verdiana", diz num sorriso.
11/2/202332 minutes, 34 seconds
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"Ópera hip-hop" angolana é “manifesto político” para maior diversidade em palco

“As aventuras do Angosat” é uma “ópera hip-hop” do artista angolano Ísis Hembe que acompanha a jornada de um astronauta em busca de vida inteligente além da Terra. A obra cruza códigos das culturas urbanas com elementos mais clássicos e tenta redefinir a noção de belo a partir da diversidade funcional e do design universal, dois conceitos centrais que fazem da peça um “manifesto político”, como nos explicou o seu autor. “As aventuras do Angosat é uma hip-hop ópera que conta a história do Man Ré que é um astronauta angolano que vai para fora da Terra à procura de vida inteligente. No percurso, perde-se e faz elucubrações filosóficas a respeito da nossa busca por vida inteligente fora da Terra que, eventualmente, não encontramos dentro de nós, nem ao nosso redor”, começa por resumir Ísis Hembe.O que é uma ópera hip-hop? O autor e músico de hip-hop resume que se trata de “um musical dramático” que resulta de “um mix de linguagens”, em que se cruzam “a linguagem épica da ópera” com a cultura do hip-hop, com o “reciclar de modelos de consumo como o TikTok” e com o uso de “samples”.“A síntese desses dois universos [ópera e hip-hop] é uma coisa bonita. Nós, do hip-hop, somos mesmo provocadores. Nós gostamos de sair das definições pré-estabelecidas e provocar os críticos para, eventualmente, expandirem a sua percepção em relação à efervescência da arte na vida real”, acrescenta Ísis Hembe.O autor da peça, que também é a personagem principal, sublinha que além de provocarem, os participantes também se deixaram influenciar por provocações inerentes à própria obra. Uma das “provocações” que mais mexeu com ele, por exemplo, foi a utilização, como personagem da peça, de “um coro de linguagem gestual angolana”, ou seja, “um coro visual” para um público mais habituado a ouvir.Ísis Hembe conta, ainda, que a obra junta várias pessoas com deficiência e tem "uma abordagem de design universal” dentro e fora do palco, ou seja, “um máximo de pessoas possíveis com deficiência podem assistir” e participar.“A nossa motivação foi mesmo trazer o belo a partir dessa perspectiva do olhar da diversidade e incluir as pessoas em diversidade funcional, sem a tónica daquela representatividade um pouco cliché que é de só estar lá por estar. Nós conseguimos trazer uma abordagem um pouco diferente - que é a tónica do projecto inteiro - que é o design universal, em que todos podemos participar com as nossas valências, com as nossas possibilidades e potencialidades e criar uma coisa bonita, onde a ênfase não está necessariamente nos corpos não normativos, mas sim na beleza.”Este é também um olhar político que derruba cânones estéticos e sociais, acrescenta Ísis Hembe. “É um pouco esse olhar que nós queremos promover: é que as pessoas em diversidade funcional podem agregar muita beleza nos palcos e na vida. É um manifesto político, sim, porque nós entendemos que a diversidade seria o projecto social mais interessante e através das nossas artes levantarmos essa bandeira.”“As aventuras do Angosat” foi encenado pela artista brasileira Fernanda Farah e esteve em cartaz no Festival inclusivo de artes “No Meu Mundo’’, que decorreu no Animart, Centro de Animação Artística do Cazenga, em Luanda, no mês de Outubro.
10/31/202310 minutes, 1 second
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Ismael Hipólito Djata, pintor e galerista na Guiné-Bissau

A RFI foi conhecer no passado mês de Setembro, em Bissau, a pintura e igualmente a galeria de arte dirigida por Ismael Hipólito Djata e o irmão Lemos Djata, também ele artista e que, aliás, foi recentemente galardoado aqui em Paris com o diploma e "Medalha de Vermeil" da Sociedade Académica de Educação e de Encorajamento da França. Esta galeria que surgiu há cinco anos no mercado de artesanato de Bissau, assume-se como um espaço inédito e destoa com as restantes propostas do local onde se concentram as vendas de estatuetas, jóias e objectos de decoração produzidos localmente. Para além de dar a conhecer o trabalho de Lemos e de Ismael Djata, este espaço apresenta as telas e aguarelas de diferentes artistas do país.Entrar neste pequeno espaço repleto de quadros que se assemelha a uma galeria de pequenos tesouros, é entrar também em diferentes espaços mentais paralelos feitos de sentimentos, sonhos garridos e olhares que nos interrogam. Ao guiar-nos na visita deste espaço, Ismael Hipólito Djata, explicou-nos o que o levou a criar esta galeria de arte em Bissau juntamente com o irmão, depois de ter estudado em Portugal e ter vivido uns tempos em Londres."Tenho viajado em vários países, projectando a arte e a cultura da Guiné-Bissau. Então, desde o princípio, assumi que eu sou embaixador nato da Guiné-Bissau. Estudei em Portugal, estive lá 11 anos, mas nunca pretendi enveredar pela imigração",  começa por explicar o pintor ao referir ter escolhido estabelecer-se no seu país, por considerar que pode ser útil. "O meu país precisa de mim e eu preciso de ajudar a nova geração e preciso de projectar o país e é isso que temos feito (...). Este ano, conseguimos ajudar 14 meninas a entrar no mundo da arte e tornarem-se profissionais. é um país que tem 70 e tal artistas nacionais e internacionais, mas só temos 3 senhoras. Tentamos ajudar as mulheres a empoderar-se pela arte", sublinha Ismael Hipólito Djata."A pintura para mim, é o amor", diz o artista que refere gostar particularmente de pintar as mulheres e as crianças por causa "daqueles olhares impressionantes, aqueles olhares que comunicam". O pintor cujo estilo é hiper-realista, diz basear-se frequentemente em fotografias mas refere que por vezes "faz aquele desafio de libertar o pensamento, indo procurar, pensar no futuro".Ao evocar as actividades da galeria que apresenta as suas obras mas também de outros artistas nacionais, Ismael Hipólito Djata refere que também dá aulas de pintura. "A escola é aqui mesmo na galeria. As pessoas matriculam-se e nós vamos dando aulas com muita dificuldade porque é um país onde não há materiais. Por isso, tenho de comprar em Portugal (...). Alguns alunos são diplomatas, alguns são alunos que têm dificuldade na escola na disciplina do desenho", explica o artista ao referir que quem tem meios financeiros paga as aulas enquanto outros alunos, com mais dificuldades, recebem formação gratuitamente.Ismael Hipólito Djata também dá conta do papel social que a arte pode ter. "Às vezes quando vendo as minhas obras, quando sei que alguma zona tem dificuldades, ajudo. Já construí três escolas aqui no país e há um projecto no qual estou a trabalhar há um ano para a construção de bibliotecas, não a nível nacional, mas em zonas remotas do país. O último evento que nós fizemos, o 'Mindjer-Arte', é uma primeira bienal para a descoberta de novos talentos (...) para o empoderamento da arte feminina", refere o galerista.Questionado sobre os desafios que tem enfrentado ao instalar a sua galeria de arte em Bissau, Ismael Hipólito Djata refere que um dos maiores obstáculos com que se deparou é a falta de informação do público sobre as artes plásticas. "É muito difícil porque estamos num país onde não é incutida a cultura de valorizar e respeitar a pessoa, não há aquela cultura de conhecer o que são as artes plásticas. As pessoas pensam que a cultura é apenas baseada na música. O respeito que têm pelos músicos é o respeito que poderiam ter por um escultor, um pintor, um artesão. Mesmo o Estado em si não respeita essas áreas. Então é muito difícil porque, muitas vezes, vemos pessoas que não têm noção do que é. Quando vêm a pintura e não sabem qual é o valor, a primeira coisa de que falam é o preço, 'isto é muito caro'", lamenta."O país tem que pensar que quer continuar a ter artistas plásticos. O país tem que trabalhar muito nisso. a primeira dificuldade é a aquisição de materiais e, esses materiais, temos que comprar fora (...). E depois, nós não temos galerias para fazer uma exposição, um grande evento de arte. O Centro Cultural Português tem um espaço mas não um espaço propriamente dito para exposições, é um espaço criado para ter biblioteca. O Centro Cultural Francês tem um espaço, mas agora acabaram com aquele espaço porque é uma sala de aulas para alunos que vão lá aprender francês. Quando essa nova geração quer expor as suas obras, não pode. Também não há muito apoio para eles (...). É preciso que o Estado trabalhe muito nesse âmbito", conclui Ismael Hipólito Djata referindo já de olhos postos noutro projecto, a construção de um centro cultural no seu país.
10/24/202321 minutes, 8 seconds
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Retrospectiva de artista congolês Chéri Samba no museu Maillol em Paris

A exposição "Chéri Samba - na colecção de Jean Pigozzi" reúne mais de cinquenta obras em grande formato e é anunciada como a primeira retrospectiva do pintor congolês. A exposição ocupa os dois pisos do museu Maillol, em Paris, e aborda cinco temáticas: Auto-retratos, A mulher, Kinshasa, Congo e África, Geopolítica, História da arte revista e corrigida. "Estou feliz por voltar a ver todos os meus filhos. Considero todas as minhas obras como filhos e voltar a vê-las traz-me uma grande alegria", reage Chéri Samba à retrospectiva que lhe é dedicada desde terça-feira, 17 de Outubro, no museu Maillol, em Paris.Durante o século XX, Chéri Samba tornou-se num dos pintos mais celebres, uma das figuras incontornáveis da arte popular congolesa e da arte urbana dos anos 70. Chéri Samba assume-se como pintor-jornalista, "faço o mesmo trabalho que vocês jornalistas. Sempre me vi como um pintor-jornalista ou um jornalista-pintor", conta.Chéri Samba descobre cedo a sua vocação pelo desenho, deixa a escola aos 16 anos para se instalar em Kinshasa, onde começa a trabalhar na área da publicidade e cria as suas primeiras bandas desenhadas. Em 1975, abre o seu atelier e dá os primeiros passos na pintura figurativa e narrativa, sempre coloridas, incorporando textos em lingala, em kikongo e em francês.A obra de Chéri Samba alimenta-se da actualidade, que interpela, denuncia, caricatura e provoca, sempre com recurso ao humor. "Gosto de explorar a actualidade, mas não qualquer marco da actualidade. O que me interessa é interpelar consciências", conta-nos o pintor, que retrata há mais de quarenta anos o dia-a-dia, expondo conflitos sociais, morais e políticos."Preciso que a minha obra seja fiel ao que quero retratar porque preciso que a minha obra transmita a verdade. À imagem acrescento textos porque até mergulhar nesta aventura da arte não via obras com textos. As pessoas diziam-me: 'nunca vimos obras de arte com texto'. A minha ideia sempre foi a de criar uma nova corrente, que chamo de 'a garra sambaiana'. Por fim, tenho uma terceira preocupação que é a presença de humor. Podemos conquistar a atenção das pessoas através do humor. Podemos chocar as pessoas sem que elas percebam e todos sorriem e riem-se. É isso de que gosto", acresenta Chéri Samba.A obra do pintor congolês vive uma reviravolta em 1989 com a exposição "Mágicos da terra" no Centro Pompidou, que apresenta pela primeira vez artistas dos cinco continentes. Passadas vários anos, é aqui em Paris, no museu Maillol, que Chéri Samba se volta a encontrar com mais de 50 das suas obras, "as minhas crianças", como diz. "Nunca pensei que as minhas obras tinham desaparecido, antes pelo contrário, sei que as minhas crianças estão em boas mão. Se as tivesse guardado em casa teria feito um mau trabalho porque é preciso que as obras circulem, para que sejam vistas por todos", conta.As guerras preocupam Chéri Samba, ele que diz não perceber que haja "pessoas com a inteligência de construir armas para matar homens. Não estamos a falar de estupidez, estamos a falar de inteligência em favor da maldade. Não percebo isto e é o que mais me preocupa hoje", admite o artista congolês.O artista plástico guineense, Nú Barreto, descreve Chéri Samba como "um dos raros artistas africanos a ser coleccionado no MoMA, em Nova Iorque, ou no Centro Pompidou, em Paris. São raros os artistas que conseguem chegar a este patamar. É dos maiores artistas críticos que arrasta preocupações sobre a sociedade, a política, a economia e o quotidiano", acrescentando que "Chéri Samba continua a ser uma referência, com um lugar de destaque no mundo".No celebre tríptico "que futuro para a arte", obra "manifesto" apresentada em 1997, Chéri Samba critica a falta de representação de artistas africanos nos museus ocidentais. De forma provocadora, o artista congolês questiona se esta indiferença das instituições não revela uma forma de racismo. À pergunta colocada em 97 "Que futuro para a arte?" - Chéri Samba diz já ter encontrado a resposta. "Na altura, havia artistas que não eram reconhecidos como artistas por serem africanos. A única justificação que nos davam era o facto de não existirem museus e galerias em África. Nada disto fazia sentido", concluiu.Quando Chéri Samba evoca no seu trabalho "esta lacuna imensa", a ausência da arte africana em país ocidentais, ele força países a desenvolverem-se como foi o caso "do Benim, da Nigéria ou do Gana, que têm mostrado preocupações culturais. O Congo também está a fazer um trabalho de fundo. Está a desenvolver-se e isso é primordial", acrescenta Nú Barreto.A exposição "Chéri Samba - na colecção de Jean Pigozzi" pode ser vista no museu Maillol até 7 de Abril do próximo ano.
10/18/202310 minutes, 49 seconds
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Coreógrafa Acauã Shereya apresentou peça autobiográfica em Paris

A coreógrafa e performer brasileira Acauã Shereya apresentou o espectáculo “Além de vocês, o que tem para comer hoje?” no Festival Excentriques, no centro de dança La Briqueterie, em Vitry-sur-Seine, a 5 e 6 de Outubro. A peça é uma performance autobiográfica de uma artista trans que quer levar para o teatro mais corpos racializados e LGBTQIA+. O espectáculo de dança e performance “Além de vocês, o que tem para comer hoje?” foi apresentado no Festival Excentriques, no centro de dança contemporânea La Briqueterie, em Vitry-sur-Seine, a 5 e 6 de Outubro. A RFI esteve à conversa com Acauã Shereya, em companhia de Di Candido [aka DIDI] que assina a composição musical.A dramaturgia nasceu da chamada “gambiarra”, ou seja, da falta de apoios institucionais e do desenrasque que é motor de criatividade em comunidades esquecidas pelo poder. “Quem mora nas periferias ou em circunstâncias de periferia e o governo não atende às necessidades básicas de uma comunidade, a gente começa a institucionalizar e a criar tecnologia a partir de recursos que são precários, que muita gente pensa que não vai dar certo ou que corre o risco de vida, mas a gente utiliza esses materiais para que nós possamos fincar o corpo e dizer ‘Eu estou aqui’”, conta a artista.“Eu penso dramaturgia como gambiarra porque os corpos racializados, negros, emigrantes, de emigração regional do Brasil que vão para os lugares mais pobres e para uma região com menos recursos, que não têm recursos para ir para a escola, etc, começam a criar estratégias para que possam viver. Então a gambiarra é uma estratégia de vida e que, para mim, faz muito reflectir sobre performatividade de género também”, continua Acauã Shereya.Por sua vez, DIDI também se inspirou da “gambiarra” que define como “a possibilidade material de algo imaterial e inacessível se tornar real”. O objectivo é, também, “ocupar espaços” que lhes tinham sido “destituídos” e levar performances subversivas de género para as salas de teatro.“A gente acredita num processo muito pós-colonial e o mundo da arte é muito impregnado a partir de conceitos e de uma estética colonial. A gente vem trazer, a partir de uma arte e de uma tecnologia ancestral, uma outra linguagem, uma outra forma de vivenciar um espectáculo e até de definir o que é espectáculo ou não”, acrescenta DIDI.Acauã Shereya é coreógrafa, performer e artista visual. Nascida em Fortaleza, no Brasil, foi educada por mulheres e pelo avô artesão. Formada em Teatro no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Brasil, onde foi professora de 2013 a 2015, formou-se também no programa “Performing Arts Advanced Programme”do Fórum Dança, em Lisboa, em 2019. Fez, ainda, um mestrado no Centro Coreográfico Nacional de Montpellier (CCN Montpellier), em França, e está actualmente em residência na Briqueterie. Foi no âmbito do CCN Montpellier que criou os projectos "Além de você, o que tem para comer hoje?" e "Nuages clouds Nuvens Intergalactic”. Actualmente, é intérprete em peças dos coreógrafos brasileiros Calixto Neto e Luara Raio e também na nova criação da coreógrafa marfinense Nadia Beugré.
10/6/202314 minutes, 9 seconds
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'Abotcha', a mediateca que deu outra vida a Malafo, no centro da Guiné-Bissau

Malafo é uma pequena povoação do interior da Guiné-Bissau. Chega-se lá por caminhos de terra sombreados de espessa floresta e, no meio de um terreno de onde brotam árvores de fruto, fica a mediateca 'Abotcha' que significa literalmente 'sobre o chão'. Um espaço que desde a sua inauguração há pouco mais de um ano, em Setembro de 2022, trouxe mudanças na vida da comunidade. Criada com o apoio do realizador guineense Sana Na N'Hada, e da cineasta portuguesa Filipa César, a mediateca 'Abotcha' dispõe nomeadamente de uma biblioteca e de computadores, onde se pode ler e estudar. Algo notável nesta comunidade relativamente isolada, refere o impulsionador e director da mediateca, Amadeu Pereira na Onça, antigo funcionário e primo de Sana Na N'Hada, que realizou o sonho de dar algo mágico à sua aldeia."De facto, tivemos dificuldades no princípio para conquistar as pessoas porque não sabiam que havia uma biblioteca. Elas perguntavam 'porque é que trouxeste esta mediateca para cá na floresta, na tabanca isolada?' Mas viram que as pessoas começaram a vir cá visitar e tomar conhecimento de alguns livros. Este é um projecto ambicioso. Naturalmente que temos alunos aqui. Esta biblioteca e mediateca podem proporcionar um aumento de nível porque a tabanca tem outras tabancas em redor", começa por referir o fundador dessa estrutura."As pessoas aprendem a ler, a escrever, a ler as histórias de outras partes do mundo. Também fizeram aqui um workshop de instrumentos musicais tradicionais. As crianças vêm aqui aprender a tocar cora, balafom, viola dos Balantas, Ngoni e muitos outros. Aqui também há arquivos que falam da luta de libertação e as pessoas têm muito interesse em ver estas imagens também", explica Amadeu Pereira na Onça referindo-se nomeadamente às projecções dos primeiros filmes de Flora Gomes e de Sana Na N'Hada sobre o período da guerra de independência, uma das actividades organizadas pela mediateca.Relativamente a outra componente muito forte da mediateca Abotcha, o cultivo da terra e a sensibilização para a protecção do meio ambiente, o director da estrutura refere que "palmeiras foram derrubadas para fazer o edifício, mas que como ambientalistas, é preciso replantar as árvores. Por cada árvore abatida aí, são repostas 10 a 14 novas plantas para substituir", nomeadamente árvores de frutas.Amadeu Pereira na Onça, que não esconde sentir orgulho por dirigir a mediateca, sublinha que ela "tem um grande impacto. Alerta as pessoas que vale a pena ter uma escola. Faz com que as pessoas tenham mais ambição. Isto aqui é uma maravilha. Quem vem aqui, vê os materiais que estão ali, os livros, os computadores e a impressora -que não havia nesta zona- as pessoas têm a ideia que vale a pena ter uma escola em condições".Para o dirigente da mediateca, de olhos postos noutros projectos, trata-se agora é desenvolver actividades de formação nesse espaço. "A ambição de tenho agora é elevar o nível da escola para o 12° ano e consequentemente chegar até ao nível da universidade, porque as tabancas vizinhas não têm liceu. Também tenho a ambição de ter cursos de formação. As pessoas, depois de concluir o 12° ano, deveriam poder fazer uma formação em diferentes áreas, porque essa comunidade é muito pobre, não tem meios financeiros para custear os estudos lá fora em Bissau ou Mansoa. Se houver esta possibilidade de acrescentar escolas de formação na construção, mecânica, agricultura, pecuária, seria muito importante" conclui Amadeu Pereira na Onça.Eis a visita da mediateca com imagens:
10/3/202316 minutes, 22 seconds
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“O corpo é uma catedral” na Bienal de Dança de Lyon

O espectáculo “Liberté Cathédral” constrói uma arquitectura humana, um edifício que dança e se equilibra em torno de gestos, contacto e sons. Esta é uma catedral que não tem paredes, mas que se ergue com os mais de 20 bailarinos porque “o corpo é uma catedral e liberdade”, resume uma das intérpretes, a brasileira Naomi Brito. A peça foi apresentada na Bienal de Dança de Lyon e é uma criação do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, do seu novo director Boris Charmatz e da companhia Terrain. RFI: Como é que descreve esta peça?Naomi Brito, Bailarina: Esta peça é desafiadora. Muitos desafios, descobertas também. Porque é que o espectáculo se chama “Liberdade Catedral”?Do que eu entendi, para mim, são liberdades humanas dentro de todos esses padrões que a gente vive e, se construirmos coisas, a gente pode dizer que nosso corpo é a nossa catedral e a nossa liberdade.A peça está dividida em várias partes que também constroem o edifício de uma catedral. Primeiro os cânticos, depois os sinos, depois os órgãos, depois os silêncios e a música Fuck de Pain Away de Peaches, antes de tudo parecer desabar para se voltar a reerguer graças ao corpo colectivo. Como é que foi criar todos estes espaços e a evolução entre eles? Como eu disse no começo, foi desafiador. Eu acho que nunca cantei e dancei ao mesmo tempo e aqui a gente teve que aprender a fazer isso. Foi um processo muito desafiador e nasceu isto.Como é que vê o seu papel, a sua partitura nesta peça? Que emoções sentiu e quer partilhar com o público?O que eu senti? Liberdade? Essa desconstrução para construir. Eu senti isso.Aqui a catedral não é, de certa forma, o oposto de liberdade? A expressão da opressão, nomeadamente com o capítulo dos silêncios? Porque estes silêncios têm um peso… O que é que eles significam? [Naomi fica em silêncio] O peso do silêncio. Sentiu? Esse silêncio, na peça, parece remeter para os abusos sexuais na igreja…Isso… [Silêncio]A peça surge depois de termos vivido a pandemia e depois de os corpos terem sido obrigados a confinar-se e a afastar-se uns dos outros. O coreógrafo Boris Charmatz falou na frase bíblica de Cristo para Maria Madalena Noli me tangere [Não me toques], depois da ressurreição… Nesta peça, vocês tocam o público, vocês interagem com o público. É um apelo ao reencontro?Acredito que sim. É. Como é que o público reage? O público ainda está “preso”? É diferente o público a que a gente se apresentou em Wuppertal e o público aqui em França. Porquê? São seres humanos diferentes. Países diferentes também. Outra linguagem também. Tem esse distanciamento porque eu não falo francês. Mas tem esse almejo pelo encontro, tem. Existe.Como é trabalhar na companhia criada por Pina Bausch sem Pina Bausch?Eu acredito que trabalhar na companhia de Pina Bausch ainda tem Pina Bausch.O que subsiste de Pina Bausch? A presença dela ainda está lá. A presença dela…Como é que se transmite essa presença? São os bailarinos que ainda lá estão e que trabalharam com ela? Com certeza, sim. E energia.Esta é a primeira criação de Boris Charmatz para o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, ele que é o novo director artístico da companhia. Como foi trabalhar com ele?Foi bom. Ele desafiou a gente a fazer muita coisa, fez a gente aprender muita coisa. Eu acredito que tem muita aprendizagem e desafios também.O que é que mais aprendeu? O que mais aprendi? Acho que trabalhar colectivamente, tão perto de pessoas, não sei, este colectivo tão junto. Eu acho que eu nunca trabalhei assim antes, com tanta gente, 20 pessoas. Colectividade, aprendi isso. Quando estamos a ver toda a peça, vemos um corpo colectivo, mas sentimos as emoções de cada bailarino individualmente. Como é construir esse corpo colectivo, partindo de cada um? O individual cria o colectivo. Cada um traz a sua história e a gente conta o todo.E como foi o processo de criação da peça? Parece que é tudo muito improvisado, mas está tudo escrito. Sim. A gente tem essa liberdade de construir o que a gente quiser com o nosso corpo, a mensagem que a gente quer passar, mas tem algo escrito que a gente tem que seguir. Por exemplo, seguir os sinos, dançar ao mesmo tempo que a gente está cantando, parar quando tem silêncio, começar de novo quando se canta de novo.Quando tocavam os sinos, a Naomi tinha um gesto repetitivo. Que gesto era esse? De um sino! [Risos] Eu não sei, pensei num relógio bem grande! Durante a sua vida, Pina Bausch quis integrar bailarinos diferentes, com formações diferentes, corpos diferentes. A Naomi é a primeira bailarina transgénero da companhia, que integrou em 2020. O que representa?É babado! [Risos] Não sei se essa palavra existe em Portugal, mas no Brasil a gente fala que é babado.O que é que isso quer dizer? Acho que não consigo traduzir. Significa muito para mim, mas também existe o peso de existir num lugar pela primeira vez, um corpo existir num lugar pela primeira vez. Então, é babado com esse peso de existir num lugar pela primeira vez. A dança pode contribuir para mudar o olhar das pessoas e para integrar corpos que até agora foram invisíveis?Com certeza, com certeza. Eu costumava pensar: se não for no meio da arte, onde é que o meu corpo cabe? Politicamente, mesmo não querendo, também acredito que eu sou um corpo político, mesmo não querendo ser. Mas eu acredito que sim. Com certeza. Ou seja, foi a arte que lhe deu o seu espaço?Sim, com certeza. Acredito que sim, mas eu também dei o meu espaço a mim mesma antes da arte. E para terminarmos, quando é que começou a dançar e o que é que a dança representa para si? Comecei a dançar com seis anos, em Paracuru, uma cidade no Brasil. Agora tenho 26. O que a dança representa para mim é estar viva. Dançar representa a minha vivência, esse meu almejo por continuar estando viva.
9/27/20239 minutes, 15 seconds
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“O corpo é uma catedral” na Bienal de Dança de Lyon

O espectáculo “Liberté Cathédral” constrói uma arquitectura humana, um edifício que dança e se equilibra em torno de gestos, contacto e sons. Esta é uma catedral que não tem paredes, mas que se ergue com os mais de 20 bailarinos porque “o corpo é uma catedral e liberdade”, resume uma das intérpretes, a brasileira Naomi Brito. A peça foi apresentada na Bienal de Dança de Lyon e é uma criação do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, do seu novo director Boris Charmatz e da companhia Terrain. RFI: Como é que descreve esta peça?Naomi Brito, Bailarina: Esta peça é desafiadora. Muitos desafios, descobertas também. Porque é que o espectáculo se chama “Liberdade Catedral”?Do que eu entendi, para mim, são liberdades humanas dentro de todos esses padrões que a gente vive e, se construirmos coisas, a gente pode dizer que nosso corpo é a nossa catedral e a nossa liberdade.A peça está dividida em várias partes que também constroem o edifício de uma catedral. Primeiro os cânticos, depois os sinos, depois os órgãos, depois os silêncios e a música Fuck de Pain Away de Peaches, antes de tudo parecer desabar para se voltar a reerguer graças ao corpo colectivo. Como é que foi criar todos estes espaços e a evolução entre eles? Como eu disse no começo, foi desafiador. Eu acho que nunca cantei e dancei ao mesmo tempo e aqui a gente teve que aprender a fazer isso. Foi um processo muito desafiador e nasceu isto.Como é que vê o seu papel, a sua partitura nesta peça? Que emoções sentiu e quer partilhar com o público?O que eu senti? Liberdade? Essa desconstrução para construir. Eu senti isso.Aqui a catedral não é, de certa forma, o oposto de liberdade? A expressão da opressão, nomeadamente com o capítulo dos silêncios? Porque estes silêncios têm um peso… O que é que eles significam? [Naomi fica em silêncio] O peso do silêncio. Sentiu? Esse silêncio, na peça, parece remeter para os abusos sexuais na igreja…Isso… [Silêncio]A peça surge depois de termos vivido a pandemia e depois de os corpos terem sido obrigados a confinar-se e a afastar-se uns dos outros. O coreógrafo Boris Charmatz falou na frase bíblica de Cristo para Maria Madalena Noli me tangere [Não me toques], depois da ressurreição… Nesta peça, vocês tocam o público, vocês interagem com o público. É um apelo ao reencontro?Acredito que sim. É. Como é que o público reage? O público ainda está “preso”? É diferente o público a que a gente se apresentou em Wuppertal e o público aqui em França. Porquê? São seres humanos diferentes. Países diferentes também. Outra linguagem também. Tem esse distanciamento porque eu não falo francês. Mas tem esse almejo pelo encontro, tem. Existe.Como é trabalhar na companhia criada por Pina Bausch sem Pina Bausch?Eu acredito que trabalhar na companhia de Pina Bausch ainda tem Pina Bausch.O que subsiste de Pina Bausch? A presença dela ainda está lá. A presença dela…Como é que se transmite essa presença? São os bailarinos que ainda lá estão e que trabalharam com ela? Com certeza, sim. E energia.Esta é a primeira criação de Boris Charmatz para o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, ele que é o novo director artístico da companhia. Como foi trabalhar com ele?Foi bom. Ele desafiou a gente a fazer muita coisa, fez a gente aprender muita coisa. Eu acredito que tem muita aprendizagem e desafios também.O que é que mais aprendeu? O que mais aprendi? Acho que trabalhar colectivamente, tão perto de pessoas, não sei, este colectivo tão junto. Eu acho que eu nunca trabalhei assim antes, com tanta gente, 20 pessoas. Colectividade, aprendi isso. Quando estamos a ver toda a peça, vemos um corpo colectivo, mas sentimos as emoções de cada bailarino individualmente. Como é construir esse corpo colectivo, partindo de cada um? O individual cria o colectivo. Cada um traz a sua história e a gente conta o todo.E como foi o processo de criação da peça? Parece que é tudo muito improvisado, mas está tudo escrito. Sim. A gente tem essa liberdade de construir o que a gente quiser com o nosso corpo, a mensagem que a gente quer passar, mas tem algo escrito que a gente tem que seguir. Por exemplo, seguir os sinos, dançar ao mesmo tempo que a gente está cantando, parar quando tem silêncio, começar de novo quando se canta de novo.Quando tocavam os sinos, a Naomi tinha um gesto repetitivo. Que gesto era esse? De um sino! [Risos] Eu não sei, pensei num relógio bem grande! Durante a sua vida, Pina Bausch quis integrar bailarinos diferentes, com formações diferentes, corpos diferentes. A Naomi é a primeira bailarina transgénero da companhia, que integrou em 2020. O que representa?É babado! [Risos] Não sei se essa palavra existe em Portugal, mas no Brasil a gente fala que é babado.O que é que isso quer dizer? Acho que não consigo traduzir. Significa muito para mim, mas também existe o peso de existir num lugar pela primeira vez, um corpo existir num lugar pela primeira vez. Então, é babado com esse peso de existir num lugar pela primeira vez. A dança pode contribuir para mudar o olhar das pessoas e para integrar corpos que até agora foram invisíveis?Com certeza, com certeza. Eu costumava pensar: se não for no meio da arte, onde é que o meu corpo cabe? Politicamente, mesmo não querendo, também acredito que eu sou um corpo político, mesmo não querendo ser. Mas eu acredito que sim. Com certeza. Ou seja, foi a arte que lhe deu o seu espaço?Sim, com certeza. Acredito que sim, mas eu também dei o meu espaço a mim mesma antes da arte. E para terminarmos, quando é que começou a dançar e o que é que a dança representa para si? Comecei a dançar com seis anos, em Paracuru, uma cidade no Brasil. Agora tenho 26. O que a dança representa para mim é estar viva. Dançar representa a minha vivência, esse meu almejo por continuar estando viva.
9/23/20239 minutes, 15 seconds
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Diana Niepce reinventa os corpos e a dança na Bienal de Lyon

“Anda, Diana” é um espectáculo autobiográfico da bailarina, coreógrafa e escritora portuguesa Diana Niepce. A peça conta o seu percurso de reconstrução e de recusa de cânones performativos desde que um acidente a deixou tetraplégica e a fez reinventar as normas ligadas ao corpo e à dança. “Anda, Diana” é apresentado na Bienal de Dança de Lyon e é também um manifesto político contra “todas as práticas de exclusão, de marginalização e de opressão”. RFI: “Anda, Diana” é um título duro, tendo em conta a sua história. Quer explicar-nos o que significa e do que fala a peça?Diana Niepce, Bailarina e coreógrafa: ‘Anda, Diana’ vem também de um livro autobiográfico que é um relato muito sarcástico e cruel. Eu tenho um lugar muito irónico dentro das minhas obras artísticas também porque trabalho muito um lugar que está muito próximo das artes visuais, com esta questão da escrita e da literatura e da forma como a literatura se compõe em termos de trabalho de intimidade. Eu trabalho muito nesse lugar, as minhas obras de dança, performance.É um espectáculo que, por si só, o tema é bastante violento e, como é óbvio, é uma responsabilidade muito grande a partir do momento que um artista se diz que vai trabalhar uma peça autobiográfica e tem a sua complexidade: que forma é que nós transmitimos, o que é que é um lugar. Neste caso, retrata um lugar bastante violento e perverso e, ao mesmo tempo, contesta normas de opressão, de todo um lugar invisibilizado pela sociedade que é formatada de uma forma que não reflectimos sobre estas questões. Então, foi um processo muito complexo que trazia muitas dinâmicas, ao mesmo tempo, de eu com o mundo, como é que eu vou trazer este lugar que tem já um livro tão tenso e denso e intenso e descritivo e de relatos intermináveis para uma peça que é uma performance. Eu sei muito bem sempre aquilo que não quero, agora aquilo que eu quero, durante um processo criativo, não é muito claro para mim. Então, eu vou trabalhando um bocadinho neste lugar de experimentação e uma das coisas que eu queria fazer era poder proporcionar uma experiência. Falou nas artes visuais. A peça é muito visual também e muito sonora. É quase “caravagesca” no trabalho de luz, depois há muitos quadros na vertical, alguns na horizontal, evocações de Crucificações e de Pietàs. Porquê as escolhas de reduzir a cenografia em palco, por exemplo? As imagens vão-se construindo em função das próprias construções sociais em torno das representações de mulher, homem. O meu trabalho é muito híbrido também. Então, tem sempre este lugar de metamorfoses dos corpos, mas não só. Este trabalho também é um trabalho em que eu alio muitas técnicas circenses porque eu também era acrobata e eu trago estas técnicas de circo, de uma forma não circense, não tradicional, mas que traz este lugar mais contemplativo de objectificação dos corpos e de permitir essa observação para com o público do corpo como ele é, com os seus esplendores e defeitos e falhas.Há também um lugar de construção da peça que tem um lugar denso de tensão em que o corpo é reconstruído através do corpo de outros. Ou seja, aqui a história é de um corpo hirto que retrata o lugar da minha tetraplegia e de que forma é que a gravidade tem um impacto que nos faz repensar a forma como o corpo trabalha. É através destes dois corpos, no caso o Joãozinho da Costa e o Bartosz Ostrowski, que vou reconstruindo o meu próprio corpo e através de imagens disseminadas que estão na nossa próprio ‘background’, mas muitas das imagens são o público que as vai buscar, elas variam entre muitas outras coisas. A maioria das vezes, não é só sobre a imagem, é sobre o estado porque existe um lugar muito importante da presença que cria variações nas imagens. E a própria música é muito densa e reflecte essa tensão. É o Gonçalo Alegria, que é o meu músico, que faz isso em tempo real e é sempre diferente, mas traz também aqui um lugar, por exemplo, em que uma das nossas primeiras inspirações – ou minha - era a violência que é entrar numa ressonância magnética e ficar lá meia hora, sabendo aquilo que nos está a acontecer com o corpo totalmente paralisado. Vem um bocadinho desta viagem que é passar por uma experiência dessas e é trazer essa experiência para um público que não está a percepcionar o que é que está a viver, mas que vai devagar construindo esta experiência somática. Isto também é muito complexo porque estamos a falar, muitas vezes, de coisas que não são palpáveis, que são de trazer densidade do que está a acontecer, da tensão, do tempo que demora a reconstruir ou a construir alguma coisa, que é algo que não é visível. Não é como no teatro, não estamos a dizer e a criar tensão através das palavras. É através do estado do corpo em que muitos dos detalhes são simplesmente a mão que vira ou que treme.A peça é um campo de batalha entre a sua mente e o seu corpo. Nota-se que vive ali no risco e o público sente esse risco e quase que tem vontade de intervir. É o risco que também a move?É um bocado vago. Já me perguntaram, há uns tempos, que era incrível o facto de eu ter tido o acidente e continuar a pôr o meu corpo em constante risco. Mas o meu trabalho foi sempre sobre isso, eu não sei trabalhar de outra forma. Eu trabalho sobre o risco, eu trabalho sobre a experimentação e eu trabalho sobre encontrar este lugar que não é um lugar de conforto e isto é um lugar de discussão, isto é um lugar de conflito interno comigo própria muitas vezes. E é um lugar muito complexo porque quando estamos a tomar decisões na criação, nem sempre conseguimos explicar o porquê ou dar a razão para estar a ir para o caminho do conflito, mas o meu trabalho é sobre isso, o que faz com que estejamos sempre a trabalhar sobre um lugar muito visceral e intenso e frágil. No entanto, eu tenho um deslumbramento sobre os limites físicos. Eu tenho um deslumbramento sobre a física do corpo, como encontrar o equilíbrio, como encontrar o desequilíbrio, o que é que faz encontrar aquele momento e suportá-lo em resistência. Essa resistência acaba por ser quase uma forma de violência também. Como é que se reconstrói o corpo, a mente, depois de tanta violência? É criando?Esse diálogo que eu falo entre a mente e o corpo é porque nós estamos sempre um bocado no conflito e eu vivi muito tempo num conflito da Diana normativa com a Diana não normativa, da Diana bailarina e da Diana que ficou tetraplégica e continua a ser bailarina e está a contestar os cânones da dança e o vocabulário da dança e a forma como observamos o corpo e a hierarquia do corpo performativo. Eu vivo dentro desse próprio conflito e da negociação entre o corpo e a mente. Com todo o ‘know-how’ que temos e que eu tenho, com toda a educação que tive e formatação em torno da dança, em que efectivamente o que aconteceu foi o meu corpo viu-se obrigado a reaprender a reorganizar-se e a reconstruir-se e a trabalhar de uma outra forma. Isto é uma forma que é muito complexa de se explicar para todo um sector que está construído em função de um padrão que o meu corpo não cumpre.Do seu acidente reinventou-se, reinventou a relação que tinha com o seu corpo. De certa forma, criou um corpo revolucionário e sacudiu a própria dança. Está a sacudi-la, a dança?É assim, isto não é bem um objectivo nas minhas coisas. Mas refutar os cânones sim, procurar o porque é que estamos sempre a fazer coisas que nos dizem que é o que temos que fazer e que estão de acordo com normas que nós nem contestamos. Não, não temos que fazer. O corpo não tem que ser só isto.Eu acho que a dança observa o corpo de uma forma muito limitada e há uma frase que eu uso muito desde a minha tese de mestrado e que é o segredo do movimento. Onde é que está o segredo do movimento? De onde vem, para onde vai, o que é que estamos efectivamente aqui a fazer? Interessa-me trabalhar políticas, interessa-me que através das minhas peças estejam a repensar o seu lugar no mundo. Eu não estou a fazer uma coisa para entreter. Eu poderia estar e é tudo válido e há espaço para tudo, mas não é sobre isso o meu trabalho. O meu trabalho, sim, é sobre a violência das normas que nos oprimem, que estão constantemente a existir e que nós observamos a existência delas, percepcionamos e não fazemos nada. Não consigo fugir desse lugar. É assim porquê? Porque eu acho que chegámos a um lugar que durante muito tempo não se questionou o porquê das práticas e há práticas que são de exclusão constante e de marginalização e de opressão. De certa forma isto é muito complexo porque eu trabalho isto através de um jogo e os jogos têm sempre dinâmicas de dominação, de submissão e estes jogos em tempo real são super complexos e, principalmente, nos tempos da criação, não estamos a brincar, tornam-se reais. E é violento estar a falar de violência e é violento estar constantemente a falar sobre isto. Mas também é um lugar que traz a mudança ou a revolução.E cria novos espaços de integração e de pensamento também…E de voz e de fala. É um bocadinho por aí. Porque é raro vermos pessoas tetraplégicas num espectáculo.Em França, eu acredito que, se calhar, se vejam mais pessoas com deficiência no geral do que em Portugal. Se bem que em Portugal o mundo cultural já teve bastantes mudanças nesse sentido. Mas podemos observar o público: não havia uma única pessoa com deficiência a observar o espectáculo. As pessoas com deficiência não estão em lugares de poder e muitas das vezes não estão em lugares de voz. Mas estão em todo o lado e as pessoas continuam a achar que não fazem parte ou que têm o direito de as excluir ou de dizer "não venham". É por isso que é importante a voz destas pessoas ou essa presença no palco. Por isso é que eu também tenho muito trabalho de formação não só de público, mas de artistas com deficiência. Apesar do que atravessou, não se posiciona no lugar de vítima e obriga-nos a repensar o nosso posicionamento imposto pelas normas culturais. Ao criar o risco de ser um exemplo ou de ser uma história inspiracional não poderá culpabilizar aqueles que têm uma deficiência, mas que não conseguem ter a sua força?É muito complexo. A sociedade está muito bem formatada para fazer com que as pessoas com deficiência se sintam menos, se sintam inúteis, se sintam fartas. Está muito bem formatada. Há um lugar de condescendência, de paternalismo muito violento e que não é visível e isto complexifica o lugar onde deixam as pessoas com deficiência. Eu compreendo que observem as minhas peças ou as minhas obras e as vejam e me coloquem num lugar de inspiração porque, de facto, as peças têm um nível de dificuldade de execução, um nível de complexidade que quem vir um ensaio consegue ver o nível de dificuldade que aquilo é para qualquer artista, seja ele com ou sem deficiência. Como eu sou uma pessoa com deficiência, como eu sou uma pessoa tetraplégica que era uma bailarina e que, por acaso, tenho uma história bonita que ajuda a fomentar todo um discurso inspiracional em torno da dança e a bailarina que voltou a andar e a peça ‘Anda, Diana’… enfim, o que quer que seja até porque, muitas das vezes, as pessoas não conseguem perceber se eu tenho uma deficiência. Se eu não enunciar que sou uma bailarina tetraplégica, como no ‘Anda, Diana’, as pessoas não conseguem perceber muito bem o que é que é. Eu não uso cadeiras, eu uso o corpo, mas eu conheço muito bem o corpo e sei muito bem trabalhar corpos e isto é complexo para uma pessoa do público que não tem a mesma percepção do que é que é trabalhar o corpo que eu e depois consciencializar-se que, no fim, eu chego lá de cadeira de rodas e isto por si só é de muita violência.Mas eu acho que é um caminho que está a surgir e hoje em dia o ‘Disability Arts’está cada vez mais presente e há mais artistas com deficiência, o Dan Daw, a Chiara Bersani,Claire Cunningham. Durante muitos anos houve outros que, se calhar, foram numa geração que tiveram mais dificuldade e em que a dança estava mais ligada a uma dança moderna, a um lugar mais estético e de forma. No entanto, também há muitos outros que trouxeram estes lugares de violência, como Bob Flanagan, que eram artistas muito próximos da ‘Live Art’. Então, eu identifico-me muito mais com este lugar porque na verdade aquilo que me interessa falar é política e não é só fazer um ballet - se bem que há formas do ballet nas minhas peças, às vezes, em que a técnica pode ser usada ou em termos de coreografia - mas interessa-me ir a um lugar mais visceral e interior.Foi convidada no âmbito da chamada Plataforma, uma selecção de coreógrafas mulheres emergentes. Como vê este gesto da parte do festival e como é que em 2023 ainda é urgente tirar as artistas mulheres da invisibilidade? Se observarmos pelas estatísticas de pessoas convidadas dentro de festivais internacionais e grandes plataformas ao longo das últimas décadas, podemos perceber a sua importância porque ainda que o homem branco se sinta, de certa forma, posto em causa hoje em dia, foram durante muito tempo os únicos escolhidos. É importante dar voz a outros e à mulher que foi durante tanto tempo... que tem que estar constantemente a defender-se. Ainda estamos num lugar que gostava que não estivéssemos. Estamos um bocadinho mais à frente, mas eu acho que ainda estamos num lugar em que temos que continuar a defender os nossos direitos.
9/22/202314 minutes, 31 seconds
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Bienal de Dança de Lyon quer abrir novas formas de encarar o mundo

A Bienal de Dança de Lyon “é muito mais do que um conjunto de espectáculos”, é um acto social e político, de acordo com o seu novo director artístico. Tiago Guedes quer uma bienal “para toda a gente” e escolheu espectáculos com uma “militância social forte” para abrir novas formas de encarar o mundo. Fiel à vocação da bienal de mostrar “a diversidade do que é a dança contemporânea”, Tiago Guedes gostaria, também, de “suprimir a palavra elitismo” deste universo.  A Bienal de Dança de Lyon, em França, é um dos encontros mais importantes da dança contemporânea a nível mundial e, pela primeira vez, é dirigida por um português, Tiago Guedes. O ex-director artístico do Teatro Municipal do Porto também assina a sua primeira temporada como director da Maison de la Danse e prepara a abertura dos futuros Ateliers de la Danse em 2026.A 20ª edição da Bienal de Dança começou a 9 de Setembro e decorre até 30 de Setembro em Lyon (e até 21 de Outubro noutras 34 outras localidades da região). No cartaz, há 48 espectáculos, 21 são criações e estreias em França.  RFI: Quais são as linhas de força a guiar esta sua primeira edição?Tiago Guedes, Director Artístico da Bienal de Dança de Lyon: A Bienal de Lyon é um evento que existe desde os anos 80, a primeira edição foi em 1984, e a sua missão desde essa altura não mudou. Ela foi construída e foi imaginada para dar a ver ao público a grande diversidade do que é a dança, nomeadamente a dança contemporânea, e a sua grande diversidade a nível de estéticas, a nível também de formatos, a nível da sua apresentação, não só espectáculos que são para teatros mas espectáculos também que se apresentam noutros sítios nomeadamente no espaço público ou em fábricas desafectadas como é o caso deste ano. Portanto, a bienal de dança não é temática, mas pretende verdadeiramente mostrar esta grande diversidade do que é a dança contemporânea hoje.Esta é uma programação que lhe chegou às mãos composta a 50% por Dominique Hervieu, a sua antecessora, ou seja, os outros 50% são seus.  O Tiago Guedes fala em programação como um “acto artístico, político e social”. Como é que isso se reflecte na programação que escolheu?Nós trabalhamos muito nesta ideia de completamente suprimir algo que muitas vezes se conecta à dança que é a palavra elitismo, ou seja, que a dança é só para algumas pessoas, que é difícil de compreender. Então, o que nós fazemos aqui é verdadeiramente abrir portas. Abrir portas de compreensão e portas de entrada também para um público que não está tão habituado a projectos artísticos. Como é que nós fazemos isso? É organizar muitas coisas para além dos espectáculos que se passam nos teatros. Uma das forças da bienal é, de facto, as suas parcerias com todos os teatros de Lyon, da área metropolitana e muitos da região, mas este ano nós começámos a criar outros extractos na programação.Para o espaço público, temos dois projectos: um projeto italiano, Alessandro Sciarroni, e um do português Marco da Silva Ferreira que são apresentados em diversas praças de Lyon, nomeadamente algumas onde há mercados, onde o público não está à espera de ver dança. Mas também tudo o que fazemos nas Usines Fagor.A tal fábrica desafectada...Sim, a fábrica desafectada, uma antiga fábrica de máquinas de lavar que é o hub criativo e convivial da bienal. Lá é o nosso ponto de encontro. É lá que o público sabe que depois dos espectáculos se pode reunir, encontrar outros públicos, encontrar os artistas. É nesse sítio também onde nós estamos a imaginar dois eventos que nós chamamos 'immersion hip-hop' ou 'immersion ballroom' que são 15 horas de mergulho nestas culturas que são culturas coreográficas, sociais, que vêm mais do underground.E das contra-culturas?Das contra-culturas, claro, e também cinco criações imaginadas “in situ”, ou seja, criações que poderiam ser feitas nos teatros, mas que nós desafiámos os artistas a fazê-las para aqueles grandes espaços, nomeadamente um dos grandes destaques desta bienal que é a primeira peça de Boris Charmatz para a companhia de Pina Bausch, o Tanztheater Wuppertal, que não acontece onde, se calhar, as pessoas esperariam que acontecesse, na ópera ou na Maison de La Danse, mas acontece numa enorme parte das Usine Fagor.E o sentido político-social da programação?Voltando à pergunta de por que é que é um acto artístico, social e político: é social no sentido em que nós defendemos que a Bienal é uma bienal popular, para toda a gente, então se é um acto social, ela tem que verdadeiramente chegar para além daquelas pessoas que já estão conectadas para a dança.Político no sentido das escolhas, ou seja, quando programas, tu escolhes o que dás a ver ao público e isso é um acto da escolha e um acto político também do que é que a dança pode ser hoje na sociedade, ou seja, como é que nós podemos ver o mundo através de um lado mais sensível ou mais brutal, ver o mundo através dos corpos e da escrita dos artistas. Isso para mim é algo que me interessa muito e que eu acho que é muito necessário nos dias de hoje.Vamos então ao abanar de consciências. Nas escolhas lusófonas, há Diana Niepce que é uma bailarina e coreógrafa tetraplégica, há Marco da Silva Ferreira que leva a dança para a rua, há Marlene Monteiro Freitas e a militante Lia Rodrigues…Porquê estas escolhas?Bom, desde logo no sentido de analisar o que já existia, quando eu cheguei, e incluir projectos onde o foco principal não é só a escrita coreográfica, mas em que há também uma militância social forte, quer seja pelas suas temáticas, quer seja pela forma como os espectáculos se apresentam.  No caso do espectáculo da Diana Niepce, “Anda, Diana”, é claramente um espectáculo importante para mim. Revolucionário?Sim e de equilíbrio também do sítio e do espaço que se dá aos artistas para estarem presentes nestes grandes eventos, não de uma forma paternalista. Este espectáculo da Diana está presente artisticamente, é um trabalho que eu defendo.O espectáculo do Marco da Silva Ferreira é um espectáculo com bailarinos muitos jovens, em que põe também os jovens no centro do seu trabalho e é algo muito importante para nós na bienal. Não é apresentado nos teatros, é apresentado onde for e tem um lado comunicativo muito próximo com todo o público, mas sem mexer o nível de qualidade.Esta bienal não é só para se ver, é também para o público dançar. Para isso criou o Club Bingo. O que é?O Club Bingo é exactamente isso. Nós defendemos na bienal que o público deve ser instigado não só a ver espectáculos, mas a praticá-los também. Ou seja, há vários espectáculos que incluem habitantes de Lyon. A bienal tem, desde os anos 90, um grande projecto no espaço público que é o ‘Défilé’ que é um projecto de 12 coreógrafos que trabalham com 3.500 pessoas, mas eu gosto muito desta ideia de que a dança está em todo o lado.Se nós começarmos a olhar o que está à nossa volta, nós vemos dança em todo o lado, ainda para mais se nos focarmos nesta definição da dança, que eu acho muito bonita pela sua simplicidade, de que a dança é um corpo em movimento num espaço. Pode ser tudo. Pode ser todos os corpos, desde logo, mas se formos a um lado um pouco mais da experiência pessoal, muita gente dança em casa, na discoteca, nas suas aulas de ginásio, se olharmos na rua vemos casais a dançar. Então, esta ideia de que a dança é algo muito incorporado nas pessoas e na nossa sociedade agrada-nos muito e foi por isso que nós dissemos bom então qual é que é um sítio onde todas as pessoas dançam? Uma discoteca, um club, que tem uma programação curada pela Rose-Amélie da Cunha que trabalha comigo na programação de tudo o que é a parte social da bienal. Todas as sextas e sábados há Club Bingo. Bingo é uma coisa lúdica, algo que toda a gente faz, que toda a gente partilha e por acaso havia um grande tag nas Usines Fagor que dizia ‘bingo’ e nós dissemos: ‘Club Bingo é o nosso ponto de encontro da bienal’.Criou um fórum de curadores internacionais, ou seja, convidou cinco comissários de Moçambique, Brasil, Taiwan, Austrália, Estados Unidos que vão trazer artistas de diferentes continentes para a próxima edição. Qual o objectivo?Eu defendo que um evento desta escala deve fazer uma radiografia do que é a dança hoje no mundo e não só na Europa. Quando observamos a nossa programação, 80% dos espectáculos, 85% quase, são projectos europeus. Para mim, é muito importante dar a ver o que se faz em todo o mundo de uma forma global com o objectivo de 50% de artistas europeus e 50% de artistas não europeus. Para isso, nós imaginámos um contexto de programação que se afasta da noção extractivista da programação. O que é que eu quero dizer com isto? Ir a um sítio longínquo, tipo a Austrália, estar lá três ou quatro dias, trazer um espectáculo, apresentar aqui em Lyon. Não. Eu estou muito mais interessado em estabelecer relações muito mais profundas com os tecidos culturais desses sítios e, para isso, é preciso tempo e conhecimento do que é que se passa nesses sítios. Então, convidámos cinco curadores não europeus de cinco continentes, África, América do Sul, América do Norte, Austrália e Ásia. Em conjunto estamos a pensar exactamente o que é que vai ser essa programação internacional para 2025.Além do fórum de curadores internacionais, o Tiago Guedes também promoveu um comité artístico da juventude “À toi” que vai escolher um espectáculo para 2025. Qual é o objectivo? Que todos participem? Isso não é uma pequena revolução na forma tradicional de mandar e programar…Claramente, há aqui uma vontade e uma crença que os processos de decisão devem ser muito mais horizontais do que são hoje. No caso do “À toi” é um projecto muito para além da questão de programarem no final um espectáculo. É um projecto defendido e organizado pela Maison de la Danse e pela Bienal. É um comité artístico de juventude, são 18 jovens que têm hoje 15 anos e que vão-nos acompanhar durante dois anos. Ou seja, eles começam uma descoberta do mundo da dança nesta bienal de 2023, vendo espectáculos e tendo um percurso crítico sobre espectáculos, de escrita crítica, e depois vão estar connosco durante duas temporadas na Maison de la Danse.  Aí é um encontro por mês, com ateliers práticos, projectos participativos, ateliers sobre o que é que são as profissões da cultura, o que é que são as profissões que existem no teatro, o que é trabalhar na produção, na técnica na comunicação, ou seja, para terem noção do que se passa nos teatros muito para além dos bailarinos que vêm dançar no palco, dos actores que vêm representar.O último atelier é um atelier comigo e com a equipa de programação da Maison de La Danse, em que, em conjunto, eles vão perceber o que é isto de programar, como é que se escolhe, sobre que temáticas, porque é que escolhemos este e não este, se gostamos de cinco mas só podemos escolher um... Então vai haver um espectáculo onde eles vão ser claramente os embaixadores e vão escolher este espectáculo que vamos apresentar na bienal 2025. Em 2025, começa a segunda promoção, o segundo grupo que ligará a bienal de 2025 à bienal de 2027. É um projecto que se renova com novos jovens a cada dois anos.Como em Avignon, é a primeira vez que um português e que um artista estrangeiro dirige o festival. Para si, o facto de ser estrangeiro tem algum peso simbólico para desempoeirar mentalidades em França?Não ousaria dizer isso. No entanto, posso dizer que sou português, não sou francês, as minhas referências são outras, as minhas conexões são outras. Desde logo, Portugal é um país periférico na Europa, há outras formas de fazer, outras formas de inventar. Tenho um percurso de artista, de produtor, de fazer muitas coisas antes de chegar à direcção do Teatro Municipal do Porto, nomeadamente uma relação forte com África, com o Brasil, portanto, outras geografias também.O que eu acho que nós podemos trazer - falando por mim, não falando pelo Tiago [Rodrigues], embora partilhemos muitas coisas – é um pouco essa abertura, alguma desinstitucionalização das instituições, algo muito importante para mim, a desverticalização das instituições também. Ou seja, a tomada de decisão e, acima de tudo, o dia-a-dia - não só a tomada de decisão porque as pessoas não têm todas de decidir, mas podem todas contribuir - mas a forma como organizamos o nosso dia-a-dia ser algo muito mais partilhado com as equipas. É uma forma também de todas as equipas levarem todas o projecto que elas sentem que é delas também, não só de um novo director ou de alguém que chega.Isso sim, são coisas novas, são coisas que estamos a tentar fazer, mas que eu acredito verdadeiramente que podemos fazer melhor de uma forma muito mais partilhada. É isso que estamos a tentar fazer desde esta bienal.Como é que podemos resumir a sua ambição enquanto director artístico da bienal de dança de Lyon? Até onde é que esta bienal pode ser o tal fórum do pensamento pelo corpo e o movimento e a ferramenta de desinstitucionalização e "desierarquizaçao" das instituições?Acho que se tem que honrar e agradecer todo o trabalho que foi feito na Bienal desde os anos 80. Eu sou só o terceiro director, o fundador Guy Darmet esteve 30 anos a desenvolver este projecto numa escala mundial e agora é um evento que o público espera que aconteça, que acorre aos bilhetes com grande velocidade, há programadores de todo o mundo que vêm a Lyon para ver a programação que nós fazemos.Então, isso dá-nos também uma responsabilidade que é o papel da bienal hoje em dia, tanto para o público, mas também para os artistas. Eu vejo sempre os projectos culturais com o duplo objectivo: é para o público, mas também para os artistas.  Ou seja, os artistas têm que ter uma consequência, por isso é que nós convidamos todos estes programadores internacionais que, depois, podem montar as suas 'tournées'.Mas, para mim, uma bienal tem que ser muito mais do que um conjunto de espectáculos. Um conjunto de espectáculos nós podemos agregá-lo numa agenda da programação, espectáculos que acontecem em todos os teatros, mas pese embora os espectáculos continuem a ser o centro, deve ir muito para além disso. Deve tocar na formação, deve tocar na reflexão, deve tocar na parte social, em muitas outras vertentes que eu defendo que devem acompanhar o lado do espectáculo. A nossa primeira bienal de base será a de 2025, esta já dá várias pistas do que é que ela pode ser e já estamos a trabalhar para a edição de 2025.Ou seja, há mais dança para além da dança?Há muito mais dança para além da dança, muito mais lastro para além dos espectáculos, muito mais discussão para além dos temas que nós vemos em cima do palco. Interessa-me menos a quantidade de coisas que fazemos, mas as coisas que fazemos que tenham muito mais lastro à volta para além da sua apresentação.
9/21/202315 minutes, 35 seconds
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"Multicolor", novo álbum de Lura, é lançado no dia 22 de setembro

O sétimo trabalho da cantora Lura, Multicolor, é lançado esta sexta-feira, com 10 novas faixas onde Lura escreve e interpreta temas que exploram desde a condição da mulher, à auto-descoberta, passando pelo racismo e a tolerância, como disse em entrevista à RFI. Lura vai estar em Paris no dia 02 de Outubro para apresentar este novo trabalho. Neste novo álbum de originais, "Multicolor", Lura fala sobre o que é importante na sua vida, na força das mulheres e na força da auto-confiança e da auto-estima, temáticas patentes em faixas como "Força dji Mujer" ou  "Vou-me amar", uma canção escrita pela própria artista."É o disco de uma Lura mais afirmativa, com uma consciência maior do que se passa à minha volta e este disco toca várias temáticas que me preocupam e fazem parte de mim, a questão da identidade, da auto-estima, empatia e importar-se com o outro. E a força da mulher na sociedade", declarou.Outro tema que a cantora luso-cabo-verdiana não teve medo de abordar foi o racismo com a canção "Preta", onde Lura questiona se devido a uma cor de pele diferente se merece morrer, dizendo que o movimento "Black Lives Matter" assim como assassínio do actor Bruno Candé, em Portugal, a levaram a escrever essa letra."Em todo o Mundo, a pele negra tem um percurso de luta pela frente, é um facto. Quero retratar este aspecto porque na altura do desaparecimento de George Floyd ou de Bruno Candé, em Portugal, surgiu-me esta reflexão que vale sempre a pena. Esta temátoca tem a ver com esta fase afirmativa da minha vida em que falo normalmente sobre todos os assuntos incluindo o racismo", indicou.Neste trabalho e descoberta de si própria, Lura não esteve sozinha. O álbum foi produzido pelo músico Agir, com colaborações com Dino de Santiago, José Eduardo Agualusa e também cantora beninense Angelique Kindjo, detentora de um Grammy.O álbum "Multicolor" vai estar disponível em todas a plataformas a partir de 22 de Setembro e Lura vai estar em Paris para um concerto no dia 02 de outubro, no Café de la Danse.
9/20/202311 minutes, 1 second
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Isabela Figueiredo: "A minha literatura reflecte a voz do Mundo"

Isabela Figueiredo, escritora portuguesa nascida em Moçambique, esteve nos estúdios da RFI para falar sobre o lançamento em França do seu romance "A Gorda" e considera que numa altura em que o politicamente correcto quer apagar certas palavras da literatura, é importante mantê-las de forma a conservar a memória que leva muitas vezes a saltos civilizacionais, como acontece, por exemplo, no período da colonização portuguesa. A autora já publicou em Portugal o "Caderno de Memórias Coloniais", A Gorda e mais recentemente "Um Cão no Meio do Caminho", tendo lançado em França em 2021 uma tradução do "Caderno de Memórias Coloniais" e agora "A Gorda", ou "La Grosse", os dois editados pela editora Chandeigne.Com um título que actualmente pode gerar alguma controvérsia, por ser considerado um insulto, Isabela Figueiredo garante que já no lançamento em Portugal, em 2016, tinha ponderado se este seria um título apropriado, tendo explicado que a personagem do romance, Maria Luísa, se apodera de potencial insulto, para se assumir e para se aceitar.Na tradução em francês do livro que fala sobre o percurso de Maria Luísa, nascida em Moçambique, tal como Isabel Figueiredo e com um questionamento sobre o papel da sua família no colonialismo português, a autora preferiu manter algumas palavras como a designação preto, uma forma como muitos portugueses na diferentes colónias tratavam os nativos e uma marca de racismo em Portugal."A minha literatura reflecte a voz do Mundo. Eu sou muito sensível aquilo que ouço à minha volta. Eu estou imersa no Mundo, não estou à parte. E quero reflecti-lo, porque se eu for um reflexo das vozes do Mundo então os meus leitores podem sublimar a realidade, podem transformá-la, mas a realidade não pode ser escondida. Nós não podemos esconder o que se passou na Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração, para podermos ultrapassar e para mostrarmos às gerações seguintes o que se passou e o que não pode voltar a acontecer. Portanto se alguma coisa de politicamente incorrecto e de difícil surge nos meus livros, não é porque eu queira manter essa situação, é porque eu quero reflectir a voz do Mundo", afirmou a escritora.Assim, apagar estas palavras dos livros, como se tem feito em obras de vários autores anglo-saxónicos não é para Isabela Figueiredo uma opção já que nesse caso se estaria a apagar a memória que levou à mudança e à condenação dessa conduta nas ex-colónias."Acho que as palavras do passado que são hoje em dia completamente desajustadas e desadequadas não podem desaparecer da literatura, porque se desaparecem, desaparece a  memória histórica daquilo que nos levou a desejar dar um salto civilizacional", defende.Em 2017, Isabela Figueiredo voltou a Moçambique. O desenraizamento, temática recorrente nos seus livros, tendo vivido até aos 12 anos neste país africano continua a atormentá-la, mas o regresso a Maputo fê-la compreender a sua identidade."Não consegui muito bem fazer as pazes [com o vazio], mas consegui uma coisa muito importante que foi perceber quem eu sou, onde é que pertenço e tornou-se para mim muito claro que fui uma colonialista, como o meu pai, não uma agente colonial violenta como ele, mas o Mundo colonial também me contaminou. Senão, eu não teria chegado em 2017 a Moçambique e não teria recebido aquele grande choque. Eu sentir-me-ia africana e não me senti africana, portanto percebi a minha identidade. Sou portuguesa, uma portuguesa com infância africana e isso também me marca, também sou um bocadinho colorida como os panos africanos", indicou.A autora tem agora uma série de apresentações de "A Gorda" em França durante esta semana, onde muitas livrarias lhe estão a dar destaque como "coup de coeur" ou livro favorito. Isabela Figueiredo vai voltar a França em Dezembro onde vai realizar durante um mês uma residência literária na Ville Marguerite Yourcenar, na fronteira entre a França e a Bélgica, após ter ganho em 2022 o prémio do público no Festival de literatura europeia de Cognac.
9/13/20239 minutes, 52 seconds
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Cabo-verdiana Luciény Kaabral vai para a companhia de Pina Bausch

A bailarina cabo-verdiana Luciény Kaabral vai integrar a companhia fundada pela coreógrafa alemã Pina Bausch, uma das referências da dança contemporânea. O convite surgiu depois de ter participado no projecto de recriação da peça de Pina Bausch, “A Sagração da Primavera”, com 38 bailarinos de 14 países africanos. O processo de criação, na "École des Sables", no Senegal, é retratado no documentário "Dancing Pina", de Florian Heinzen-Ziob, exibido este sábado, na cidade da Praia. Luciény Kaabral tem 22 anos, começou a dançar no grupo cabo-verdiano Raiz Di Polon aos 17 e fez o primeiro espectáculo aos 18 anos. No final do ensino secundário, estava à espera de uma bolsa de estudo para estudar medicina em Portugal, mas acabou por abraçar o caminho da dança que hoje descreve como “uma forma de devoção”. Foi, então, estudar para a Escola Superior de Dança, em Lisboa, com o apoio do programa Procultura que apoia artistas dos PALOP e Timor-Leste.Em 2019, Luciény Kaabral foi à audição para uma recriação da peça de Pina Bausch “Sagração da Primavera” e acabou por integrar o grupo de 38 bailarinos de 14 países africanos, dirigidos por bailarinos da companhia fundada pela coreógrafa alemã, o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. O grupo ensaiou durante meses na célebre "École des Sables", no Senegal, mas a pandemia impediu o arranque da digressão e só um ano e seis meses depois é que a peça estreou em Madrid, em Setembro de 2021. Dos 38 bailarinos, até agora, só a cabo-verdiana foi convidada a integrar a companhia actualmente dirigida pelo coreógrafo Boris Charmatz.O convite tem um peso ainda mais simbólico porque Pina Bausch é “uma lenda” que acompanhou o percurso de Lucieny na dança e que a ensinou “a contar uma história verdadeira” com o corpo.“Fazer o belo, fazer para mostrar bonito não é o objectivo. Podemos chegar lá - ou aos olhos dos espectadores podemos chegar lá - mas nós não estamos a dançar para alguém. Eu lembro-me do que ela já tinha dito, e foi repassado pelos bailarinos que trabalharam com ela, que é: 'Dança como se ninguém estivesse a ver'. Ou seja, é realmente de dentro para fora e, muitas vezes, lá nos ensaios, é exactamente o que nós passávamos. Tantas horas a repetir a mesma coisa, mas não é repetir a fazer a mesma coisa. É repetir até que o corpo sinta e grave aquela emoção que gera esse movimento e todas as partes do corpo estão envolvidas. Através da respiração eu conseguia atingir isso, mas só conseguia porque havia uma emoção por trás, havia um sentimento que nem sempre tem a ver com a história da peça, mas que tem a ver comigo mesma, com a forma como eu me sinto naquele dia. Por isso é que eu digo que é contar uma história verdadeira”, explicou a bailarina à RFI, na entrevista que pode ouvir aqui.Luciény Kaabral é uma das vozes do documentário "Dancing Pina", de Florian Heinzen-Ziob, que retrata o processo de recriação de duas peças de Pina Bausch: “A Sagração da Primavera”, na "École des Sables", onde Luciény ensaia ao lado de bailarinos de toda a África, e “Ifigénia entre os Tauros”, ensaiada pela companhia de bailado da Semperoper, na Alemanha. No filme, a cabo-verdiana recorda que a pessoa com quem começou a dançar no grupo Raiz Di Polon, o bailarino Nuno Barreto, lhe falava constantemente de Pina Bausch e, desde então, vê a coreógrafa, falecida em 2009, como “uma lenda”.“Comecei em 2018 a trabalhar com o bailarino Nuno Barreto, que faz parte da Raiz Di Polon, e ele chamava-me muito à atenção no sentido de que dançar não é reproduzir um determinado movimento, não é copiar. Tens que realmente procurar as emoções que são reais e, com isto, trabalhar o movimento porque, aí sim, é real. Então, sempre quando ele insistia nessa questão e eu não estava a compreender, ele mostrava os vídeos da Pina Bausch, os bailarinos da Pina Bausch e os ensaios dela. Eu sempre admirava muito o que ela fazia porque eram pequenos gestos do quotidiano que nem sequer ligamos, mas ela consegue tornar aquilo dança. Então, ela sempre esteve presente desde o início na forma como eu vejo a dança. (…) Para mim, Pina Bausch é sem dúvida uma referência de dança, uma lenda quase”, conta Luciény Kaabral.O documentário "Dancing Pina" é exibido este sábado [9 de Setembro] na Praia, na ilha de Santiago, e no dia 15 de Setembro no Mindelo, na ilha de São Vicente, na presença da bailarina que se encontra em Cabo Verde, este mês, no âmbito de vários projectos, entre criações coreográficas, workshops e oficinas. O filme estreou em França em Abril deste ano e vai estar disponível nas plataformas VOD na próxima terça-feira, 12 de Setembro.
9/7/202312 minutes, 51 seconds
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Jovens e público moçambicano "impressionam" em ópera em Maputo

A orquestra Xiquitsi, um projecto da associação Kulungwana que visa a integração e formação dos jovens moçambicanos através da música, comemorou este ano os seus 10 anos de existência e re-encenou a ópera "Orfeu nos Infernos". No papel principal esteve a soprano portuguesa Marina Pacheco que diz ter ficado impressionada pelos jovens e pelo público de Maputo. A Temporada de música clássica que celebra os 10 anos da orquestra Xiquitsi em Maputo levou à cena a opereta Orfeu nos Infernos, de Jacques Offenbach, ao público moçambicano. Numa versão em português a partir do francês original, o Scala de Maputo encheu-se para conhecer a história de Orfeu e Eurídice numa fase menos boa da sua relação numa sátira à mitologia.Marina Pacheco, soprano portuguesa, esteve em Maputo para levar a palco esta obra e dar formação aos jovens músicos da orquestra Xiquitsi e explicou à RFI a complexidade do projecto."Foi escolhida uma opereta de Jacques Offenbach, que nós quisemos totalmente em português, quer o diálogo, quer as partes cantadas e que se chama 'Orfeu nos Infernos'. Para isto tudo, o nosso projecto de três passou a ser de quatro e criámos este desafio, muito grande, porque criar uma opereta envolve cenografia, figurinos e os alunos Xiquitsi para além de tocarem e integrarem o coro, alguns também tiveram papéis de solistas. Foi absolutamente fabuloso", afirmou a soprano.Marina Pacheco já tinha estado em Moçambique para um outro projecto com a ópera Xiquitsi em 2018. Este projecto foi fundado por Eldevina 'Kika' Materula, actualmente ministra da Cultura e Turismo, e oboísta, uma figura com a qual Marina Pacheco se encontrou em Portugal, criando assim uma cumplicidade entre as duas.Cada projecto serve não só para actuar em Moçambique, mas também, e sobretudo, ensinar os jovens da orquestra na sua formação musical, mas os ensinamentos são também para os músicos profissionais."A alegria destes miúdos, estamos a falar de crianças e jovens, é algo que trazemos sempre depois de trabalhar no Xiquitsi. É esta aprendizagem, achamos que vamos ensinar e  efectivamente vamos dar o nosso contributo do ponto de vista de educação musical e performers, mas estes seres humanos ensinam-nos imenso", contou.Esta orquestra permite aos jovens progredirem e apostarem em carreiras profissionais na música, algo que poderia parecer longínquo para muitos deles. No entanto, o talento, é notório."Há vários alunos neste momento, que fizeram o seu processo educativo com a orquestra Xiquitsi, que estão através de bolsas a estudar na Europa. Alguns já concluíram as suas licenciaturas e são agora formadores Xiquitsi ou alguns continuam pós-licenciatura e estão a fazer carreiras muito bonitas", declarou Marina Pacheco.Com a versão em português, o que tornou a interpretação mais didáctica e perceptível para todos que estiveram nos dias 3 e 4 de Agosto nas representações, a interprete portuguesa diz que o público não escondeu a sua satisfação, algo que dá alento aos músicos em palco."Do ponto de vista de quem está em palco, impressiona a entrega dos jovens. Nada é impeditivo de fazer seja o que for e vamos até onde for possível para fazer acontecer o projecto. São incansáveis, do nada se faz tudo. Do ponto de vista do público, é incrível a maneira como vibram, aplaudem e riem. É uma opereta e tem momentos cómicos e satíricos, em que há muitas gargalhadas, e não há medo de reagir e de bater palmas. E isso é tão bom para nós as artistas, esta espontaneidade", concluiu.
9/5/202310 minutes, 36 seconds
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“O Jardim da Celeste” de Waldir Araújo troca armas por flores em nome da paz na Guiné-Bissau

Decorre, esta tarde, no Centro Cultural Português em Bissau um encontro com o escritor guineense Waldir Araújo sobre a sua mais recente obra “O Jardim da Celeste”. Um livro que troca as armas por flores em nome da paz e estabilidade da Guiné-Bissau. Nas palavras de Waldir Araújo, “O Jardim da Celeste” é um “hino ao perdão”, uma invasão de flores em nome da paz e estabilidade de um país que ainda guarda na memória recente as marcas do conflito militar de 1998.É um jardim muito simbólico que guarda memórias de gente que infelizmente partiu devido ao conflito militar que assolou este país em 1998 e que até hoje deixou marcas na sociedade e em várias famílias guineenses. Eu utilizei o título “O Jardim da Celeste” porque o personagem principal chama-se Celeste e, também, pelo facto do título remeter para a nossa memória colectiva de infância do ‘jardim da Celeste’. Todos carregamos uma criança dentro de nós, a criança que já fomos.A Celeste tinha um grande amor pelas flores, pelo jardim, assim como a filha dela que era uma flor que, infelizmente, morreu durante o deflagrar de uma bomba em 1998, juntamente com o pai.A Celeste em homenagem à partida destes dois entes queridos transformou o cemitério num jardim.”A segunda obra de Waldir Araújo foi lançada em Bissau a 27 de Maio. Dia escolhido a dedo pelo escritor, para fazer coincidir com a data da morte do poeta e músico guineense José Carlos Schwarz.O livro ganhou, no ano passado, o prémio José Carlos Schwarz, atribuído pelo Instituto Guimarães Rosa, que é o Centro Cultural do Brasil na Guiné-Bissau. José Carlos Schwarz é o nome maior da nossa história em termos de poesia, em termos de poesia revolucionária, em termos de música, foi o pioneiro na música moderna guineense mas mais do que isso foi um pensador. José Carlos Schwarz foi o homem que cantou e eternizou a epopeia da luta da libertação nacional. (...)  É um privilégio enorme ter vencido um prémio com o nome do José Carlos Schwarz que a 27 de Maio de 1977 morreu num trágico acidente ainda por esclarecer. Foi uma forma singela de homenagear um homem ímpar que nunca mais a Guiné-Bissau terá, em tamanho e dimensão.”
8/30/202310 minutes, 7 seconds
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Kláudio Hoshai apresenta "Do sonho para a realidade" em Paris

O cantor e compositor angolano, Kláudio Hoshai, apresentou alguns temas do álbum que está a preparar intitulado "do sonho para a realidade".  O cantor e compositor angolano actuou na Peniche Alizé, em Paris, onde apresentou alguns títulos do seu primeiro álbum "do sonho para a realidade". O disco está a ser produzido em Angola e misturado em França e vai ser editado ainda este ano. Kláudio Hoshai começou por escrever para outros artistas, "uma experiência que me trouxe um grande crescimento na minha carreia. Hoje é o momento para editar o meu próprio disco. Sempre sonhei ter o meu próprio álbum. O nome do álbum é 'do sonho para a realidade' porque é uma história que sempre sonhei. Ainda não temos data, mas o projecto está bem perto da realidade", explicou.Alguns títulos abordam as temáticas da imigração ou da violência porque "cabe-nos também a nós músicos falar dos problemas da sociedade, para combater costumes errados", sublinha.Em 2011, Kláudio Hoshai estava a estudar em França quando o tema 'Pió Pió' "começou a tocar muito em Portugal e Angola". Nesse momento o cantor e compositor parou os estudos para se lançar, a tempo inteiro, na sua carreia. 'Pió Pió' é um êxito lançado há seis anos, "gravei a música em 2016. Tocou um tempo e depois parou, mas agora voltou. Tenho nove músicas disponíveis nas plataformas digitais, mas 'Pió Pió' é a mais ouvida", conta Kláudio Hoshai.
8/16/202310 minutes, 46 seconds
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Livro mostra a "incrível riqueza" do universo musical de São Tomé e Príncipe

Magdalena Bialoborska Chambel publicou o livro "Dêxa Puíta Sócó(m)pé. Música em São Tomé e Príncipe: do colonialismo à independência", mostrando a "incrível riqueza" da música são-tomense. Ússua, socopé e dêxa são apenas alguns dos géneros musicais de São Tomé e Príncipe que figuram no novo livro da investigadora Magdalena Bialoborska Chambel chamado "Dêxa Puíta Sócó(m)pé. Música em São Tomé e Príncipe: do colonialismo à independência", que conta através dos diferentes géneros musicais existentes no país os últimos 150 anos deste arquipélago africano.Magdalena Bialoborska Chambel é investigadora do Centro de História da Universidade de Lisboa, especializada em Estudos Africanos, e já levou a cabo projectos não só em São Tomé e Príncipe, mas também Guiné-Bissau ou Cabo Verde.Em entrevista à RFI, esta académica explicou as razões de ter levado a cabo esta investigação e de onde surgiu a ideia para o título deste livro."Sócópé, Dêxa e Puíta são três géneros musicais das ilhas, três dos vários. Dêxa é um género musical da ilha do Príncipe, Puíta veio ou foi criado nas ilhas pelos trabalhadores que vieram de Angola e Sócópé é um género musical dos ilehus da ilha de São Tomé, tocada tanto no Príncipe como em São Tomé. São três géneros musicais, mas também um jogo de palavras. O título foi criado pelo Angelo Torres, autor e realizador são-tomense que quando eu comecei a trabalhar sobr ea música de São Tomé e Príncipe sugeriu este título", explicou a investigadora.O livro abrange a segunda parte do século XIX até aos anos 90 do século XX, acompanhando a história deste país, com a criação as roças de café e cacau em São Tomé e Príncipe e com a consequente chegada dos trabalhadores contratados Angola, Cabo Verde e Moçambique. Esta chegada, por exemplo, "mudou a estrutura social das ilhas e o panorama musical", como explicou a investigadora."A música é um espelho em que se pode ver a sociedade, aquilo que se passa, as mudanças, alterações sociais. A música acompanha todas estas mudanças", afirmou Magdalena Bialoborska Chambel.Para fazer este livro, a investigadora teve de consultar e organizar fontes como livros, biografias, mas também jornais, assim como registos audio e fotografias. Outra fonte preciosa, foi o arquivo da Rádio Bacional de São Tomé e Príncipe composto por várias gravações.Assim, através deste estudo, fica demonstrado que apesar da reduzida dimensão territorial e de habitantes, São Tomé e Peíncipe encerra uma riqueza musical "incrível", com dezenas de grupos musicais e géneros diferentes que convivem no arquipélago."Quando comecei a ir a São Tomé e Príncipe sobre outro projecto conhecia pouco sobre a música do país. Durantes estes anos fui constatando a incrível riqueza deste peqeuno universo, porque estamos a falar de duas ilhas que têm 200 mil habitantes, mas no período descrito no livro, havia cento e pouco mil habitantes, portanto as dezenas de grupos musicais e de géneros musicais. Nós não temos essa noção", declarou.O livro "Dêxa Puíta Sócó(m)pé. Música em São Tomé e Príncipe: do colonialismo à independência" foi apresentado em Lisboa em Abril.
8/15/20239 minutes, 55 seconds
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Filme lembra “invisíveis” que lutaram contra a guerra colonial

O filme “As Mãos Invisíveis” conta algumas das histórias de portugueses que, a partir de Paris, ajudaram desertores e refractários da guerra colonial. O documentário parte de uma casa que foi um dos locais de acolhimento e de resistência à ditadura de Salazar e ao colonialismo. O realizador Hugo dos Santos quis tirar da clandestinidade a memória dessa resistência invisível e falou com a RFI sobre o filme que acaba de passar num festival de documentário português. RFI: Porque é que o filme se chama “As Mãos Invisíveis”? Hugo dos Santos, Realizador de “As Mãos Invisíveis”: O filme chama-se “Les Mains Invisibles” porque, de uma certa forma, conta a história de um grupo de pessoas invisíveis que eram emigrantes clandestinos, desertores, dentro de uma emigração que em França é chamada de invisível. Por isso, falei de invisibilidade e o facto de remeter para as mãos é remeter para as pessoas que vão ter uma acção: não só trabalhar, mas também pode ser o punho levantado ou pode ser simplesmente muitas pequenas acções invisíveis que remetem para acções que têm impacto na história.No filme ouvimos que 200.000 jovens portugueses fugiram para não irem à guerra colonial/das independências. A maioria foi para França, mas só uma parte era politizada e o filme centra-se mais nessas pessoas. Porque é que quis dar rostos a estas pessoas e porque é que fala, às vezes, de memória clandestina? São muitas perguntas! Para já, eu achei que era uma história bonita simplesmente. Eu acho que era uma bela coisa de contar uma história pouco conhecida, que é um exemplo, porque houve muitas histórias em volta da emigração portuguesa e da recusa da guerra colonial. Como eu conhecia algumas personagens, achei que esta história valia a pena ser contada.É também uma forma de reparar alguma injustiça histórica, digamos assim?Sim e não. Eu acho que pensar a emigração portuguesa ou representar em filmes documentários ou ficções a emigração portuguesa sem falar da recusa da guerra colonial é incompleto porque há pessoas que recusaram a guerra colonial de forma estruturada politicamente - quer dizer num partido, por exemplo, já tinham decidido e sabiam o que fazer - e há pessoas que simplesmente foram-se embora porque não queriam ir à guerra, não queriam matar outras pessoas. Eu acho que isto vai muito além de um grupo mais ou menos politizado que aparece no filme. Eu também não faço esta diferença entre emigração política e emigração não política porque eu acho que a maior parte das pessoas que emigraram tinham uma percepção política das coisas. Ser uma percepção política não quer dizer uma percepção partidária, mas simplesmente pensar: “Neste país não dá, temos que sair, esta guerra não dá, temos que sair”.E recusaram, justamente, a guerra…Exactamente. Não são só os grupos politizados. Eu quis falar deste grupo porque era também um grupo que estava na acção. No filme, não me interessou falar verdadeiramente do partido político ou do micropartido ou dos grupos políticos que estavam mesmo envolvidos. Para mim, interessava simplesmente um grupo de pessoas, um grupo de jovens portugueses e franceses que pensaram que era injusto fazer uma guerra em Angola, Moçambique, Guiné, achavam que era uma coisa horrorosa, que não queriam matar africanos e pensaram simplesmente desertar e depois apoiar as pessoas que desertavam. Eu acho que partiu de uma sensação muito sincera, muito natural, muito além de uma estruturação política. Para dizer a verdade, mesmo uma parte da estruturação, da ideologia política daquela época, uma parte, eu acho que hoje em dia pode-se dizer que era justa e outra parte não tinha muito sentido, por isso, também não quis pôr o debate sobre o sexo dos anjos politicamente porque não fazia sentido.O meu filme fala de um grupo, mas não só, fala das mãos invisíveis que são todas aquelas pessoas que partiram daquele país para não fazerem a guerra ou que tiveram que partir para a guerra porque também se vê no filme imagens de pessoas que foram e, de uma certa forma, é outro lado da mesma moeda.E houve quem fosse e desertasse, inclusivamente com armas, como se apelava a partir de Paris, nomeadamente… Mas vamos agora ver alguns dos principais rostos do filme, por exemplo, um testemunho marcante é o de Vasco Martins. Quer falar-nos da importância dele nesta rede de mãos invisíveis que acabou por funcionar a partir de uma casa parisiense?O Vasco é, antes de tudo, um amigo, não é da mesma idade, mas é um amigo que eu conheci na Associação Memória Viva. Foi pouco a pouco que eu comecei a conhecer a história dele porque era uma pessoa discreta, pelo menos no início do processo memorial, e foi pouco a pouco que comecei a entender a importância das acções que tinha tido o Vasco, nomeadamente, na criação de redes de apoio aos desertores que passaram pela casa dele e como uma pessoa de contacto. O Vasco era e é uma pessoa que faz. Quer dizer, há uma coisa para fazer, estamos à espera que se faça, estamos a decidir, mas já está feito, o Vasco já fez. Há uma personagem que não se vê no filme que me disse que o Vasco é um activista “low profile”, quer dizer, que é uma pessoa que não dá nas vistas e, mesmo assim, é aquele que faz. Politicamente, de uma forma geral, além desta história de emigração e da recusa da guerra colonial, é uma coisa que tem importância para mim porque eu acho que o que tem impacto politicamente não são só as pessoas que gritam, não são só as pessoas que são estruturadas num partido, são as pessoas que fazem e que, às vezes, são invisíveis.As tais “mãos invisíveis”. Exactamente e no filme vê-se o Vasco Martins, mas também se vê a Thérèse Martinet, do lado francês, que é a pessoa que estruturou, como ele, esta rede de apoio aos desertores, uma rede informal. Hoje em dia, se não fosse o filme, seria uma pessoa completamente desconhecida. Ela teve uma importância essencial nesta história de forma global.Era a proprietária da casa…Era a proprietária da casa onde o Vasco criou a rede, mas era também a pessoa que vivia lá e que aceitou viver com um grupo de desertores e era uma pessoa que teve uma vida colectiva com estas pessoas, como também foi uma pessoa que foi além de acolher. Há uma parte das coisas que nem sei porque ela infelizmente começou a perder a memória depois de uma doença, mas ela fez idas e voltas para Portugal, meteu-se em perigo, também ajudava muito os portugueses a aprenderem francês, a encontrarem trabalhos. Mãos invisíveis é do lado português como do lado francês.Ela chegou inclusivamente a levar material para Portugal. É o que se diz no filme. O filme também fala um pouco dos bastidores da luta desta rede de resistentes, das armas que foram encontradas, dos apelos à deserção com armas. A casa foi um epicentro dessa luta  invisível?Não sei se o lado da luta armada, que é uma coisa que existiu nos anos 60, 70, um pouco nos anos 80, será propriamente uma acção invisível, de uma certa forma era quase uma acção de propaganda porque estas armas eram pouco usadas obviamente. Há um paradoxo do qual falo no filme: este grupo, que era profundamente pacifista, contra a guerra, contra todas as guerras, achava que naquele momento da ditadura, a única forma lógica de desertar era desertar com armas. Mas desertar com armas, o que é que queria dizer? Queria dizer que supostamente o desertor devia ir com armas ou enterrá-las num sítio qualquer para que no dia que fosse necessário, quando as massas estivessem organizadas ou uma coisa dessas, se pudessem usar aquelas armas. Mas a ideia não era sustentar uma luta armada frontal contra o regime, não era nada disso. Era simplesmente que dentro de um regime tão repressivo, acharam que desertar com armas era o caminho mais secreto, mas não quer dizer que usavam armas, que estavam na luta armada.O filme também mostra que a música, nomeadamente o Tino Flores, e o teatro foram fundamentais nesta luta contra a guerra. Quer contar-nos como? Eu acho que os anos 60, 70, em Portugal e também em França, havia uma percepção que as artes – cinema, música, teatro - deviam ter um empenho político. Obviamente que na luta contra a ditadura de Salazar, contra o colonialismo, estas artes foram usadas. O que não se sabe tanto é que os emigrantes portugueses em França produziram muitíssimas coisas, organizaram muitíssimos concertos, grupos de teatro, peças que foram apresentadas em associações, conversas, palestras e festas simplesmente. É isso que eu mostro um pouco no filme que é uma coisa que não se sabe tanto. Sabe-se que houve o Zeca Afonso, o Sérgio Godinho ou o Tino Flores, que é um pouco menos conhecido, mas sabe-se pouco que aquilo maturou na emigração porque tanto o Sérgio Godinho como o José Mário Branco, como o Tino Flores, estiveram na emigração em França e é ali nestas conversas de cafés, nestas organizações políticas, nas associações também, que conseguiram criar uma nova onda musical. Tanto que o Zeca Afonso grava o “Cantigas do Maio” em França - não é a única razão, mas é uma das razões. Há, em França, uma onda de artistas políticos. No filme vê-se o Tino Flores que é um cantor e também se vê o Hélder Costa que escreve peças de teatro, escrevia e ainda escreve, e que organizou muitos grupos de teatro nas associações de emigrantes.O filme recorre a imagens de arquivo, como documentários nos bairros de lata. Como é que foi este trabalho para chegar a imagens que são tão pouco conhecidas do público, excepto as fotografias…Não sei se há muito poucas imagens. O problema é saber olhar para as imagens que temos. Por exemplo, nos arquivos do INA, da televisão francesa, existem muitíssimas imagens da emigração portuguesa dos bairros de lata e outras coisas. Às vezes, o problema é saber o que estamos a ver, pensamos que estamos a ver um bairro de lata e estamos a ver um filme militante, ou estamos a ver um processo de expulsão do bairro de lata. Não entendemos, às vezes, o que estamos a ver e eu acho que no filme tento sempre dar o contexto das imagens porque eu acho que é ali que as imagens se tornam autónomas, quase como personagens, e também se tornam mais políticas.Ali estás a ver, por exemplo, quer o olhar de um militante francês, quer  o olhar de um militante português, quer o olhar da televisão francesa ou holandesa e isto é bastante importante para saber o que estamos a ver. No filme, eu não quis usar imagens para ilustrar. Nunca estou a ilustrar. Sempre dou a importância completa às imagens.Relativamente à pesquisa, foi uma pesquisa extensa em toda a Europa à procura das personagens, a ver se conseguia encontrar tal ou tal personagem em tal ou tal filme. Para fazer este filme não havia uma matéria extensa no início porque são memórias, não havia uma matéria extensa: a casa foi destruída nos anos 90, já não existe; vários personagens também perderam um pouco a memória ou algumas lembranças porque foi há muito tempo e é também uma memória traumática. Eu tive que reflectir na forma de contar aquela história e, para mim, a forma certa de contar aquela história não era contar a grande história ou encher todos os buracos. Era deixar aparecer os espaços vazios. Com as imagens de arquivo ou com algumas conversas com as personagens ou também com a minha voz, com o meu raciocínio, consigo dar mais ou menos o fio da história para se poder entender o que se passou. Mas não se sabe tudo porque eu acho que é também uma forma de encarar a história que é específica. Quando se faz um documentário histórico, a ideia de não é contar exactamente como é que foi, a ideia é deixar entender às pessoas como talvez foi. Então, uso os arquivos desta forma, os arquivos permitem entender como talvez foi. Não estão ali para dar uma prova. O filme “Les Mains Invisibles” [“As Mãos Invisíveis”] estreou no DOClisboa em Outubro do ano passado, esteve, a 1 de Agosto, no Festival Internacional do Documentário de Melgaço, em Portugal e chega a França no próximo ano.
8/8/202317 minutes, 20 seconds
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Kuduro de Scró Que Cuia projecta minoria tchokwé nos países de língua portuguesa

O cantor angolano, que lançou recentemente um música com o ex-presidente do Sporting Clube de Portugal, quer continuar a ganhar visibilidade nos países de língua portuguesa. A sua cultural local angolana tchokwé é um trunfo.   Scró que Quia foi, em Angola, no ano de 2018, o artista revelação do ano no importante concurso Angola Music Awards. Agora, o cantor de 29 anos está a revelar-se em Portugal e nos países de língua portuguesa, depois do mais recente single que fez com o ex-presidente do Sporting Clube de Portugal, Bruno de Carvalho.A música de Kuduro, lançada no final de maio, tem cerca de 2 milhões de visualizações no Youtube e é o maior sucesso em 6 anos de carreira. Num mundo globalizado, a língua portuguesa, oficial em 9 nações, permite conhecer especificidades culturais de cada país. Scró que Quia sabe-o e, na música com Bruno de Carvalho, projectou, através da dança, a minoria etnicolinguística tchokwé, natural do nordeste de Angola.O objectivo do cantor Angola, que está agora a viver em Portugal, passa agora por consolidar o nome no país Europeu e conquistar o mercado brasileiro.
8/1/20238 minutes, 52 seconds
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Fadista portuguesa Maura Airez lança novo single "Ai meu amor"

A fadista portuguesa Maura Airez lançou, no passado dia 30 de Junho, o seu novo single "Ai, meu amor", um folclore progressivo que junta o tradicional e o contemporâneo num tema muito singular. Este novo trabalho conta já com mais de 118 mil visualizações no Youtube. Maura Airez é portuguesa, tem 24 anos, nasceu na Margem Sul do Tejo, e é filha de uma cantora lusa e de um antigo futebolista argentino. Começou a sua carreira em 2015, já passou por vários festivais e concursos e até já representou Portugal além fronteiras. A artista é agenciada pela Lisboa Amsterdam e a sua editora discográfica é a Vibra Music.Em entrevista à RFI, a fadista começou por falar sobre o tema "Ai, meu amor", que foi lançado há cerca de três semanas, e que é um tema muito peculiar."O 'Ai meu amor', com letra de Miguel Domingos Garcia, é um folclore progressivo, uma ligação de uma fadista com uma sonoridade mais urbana. É também a ligação de uma mulher, de 24 anos, a uma mulher que vive do Fado, desde os 16 anos. O 'Ai meu amor' fala de três temas que me são muito pessoais porque os canto regularmente: a perda, o amor e a salvação. O Fado vive disso e faz-me transmitir às pessoas aquilo que eu sinto", disse, em entrevista à nossa rádio. Veja aqui o vídeo de "Ai meu amor":Maura Airez esteve em Paris, esta semana, para as filmagens do seu próximo single denominado "Sou Mulher", que deverá ser lançado no próximo mês de Outubro. 
7/26/20238 minutes, 25 seconds
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Avignon: "Antígona na Amazónia é o não à violência”

“Antígona na Amazónia”, do encenador suíço Milo Rau, inscreve-se na procura contínua de um teatro da resistência. A peça faz um paralelo entre a tragédia grega e a tragédia universal da destruição da Amazónia, a partir do massacre de 17 de Abril de 1996 de activistas do MST. Esta Antígona é “o não contra o sistema” e contra a violência, explica o músico Pablo Casella que esteve à conversa com a RFI, juntamente com o actor Frederico Araújo. A peça está no Festival de Avignon de 16 a 24 de Julho. “Antígona na Amazónia” volta a mostrar a convicção de Milo Rau de que “não basta representar o mundo, é preciso mudá-lo”. A obra cruza a tragédia grega e a mítica Thebes com a província do Pará, no Brasil, onde a selva da Amazónia vai sendo destruída pelos grandes grupos industriais. Milo Rau junta actrizes e actores brasileiros e belgas, activistas indígenas e membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A tragédia acontece em cima do palco, mas também é-nos trazida pelos planos filmados e projectados num “ecrã-tríptico” que transporta o público para a reconstituição de um massacre no local onde ele aconteceu em 1996, a partir da outra reconstituição que acontece em palco. A dada altura, no mesmo palco, ouve-se a frase: “Não há mitologia e realidade. É tudo a mesma coisa.”Esta “Antígona na Amazónia” representa “o não contra o sistema”, contra o que foi o Brasil de Jair Bolsonaro, contra a destruição da Amazónia por multinacionais e contra a violência policial, resume o músico Pablo Casella que abre a peça a cantar “nada é mais monstruoso que o ser humano”. A peça inventa um novo final para a tragédia grega e lemos a frase « Isto não é o fim » porque o MST rejeita « o suicídio final, colectivo » já que “a luta continua”. Para o actor Frederico Araújo, “Isto não é o fim” é um sinal de esperança porque as pessoas podem mudar para que outras não morram “por serem pretas, trans ou defensoras do meio ambiente”.RFI: Vocês fazem uma reconstituição filmada no Pará no dia de aniversário do massacre de 17 de Abril de 1996, fazem também uma nova reconstituição no teatro da reconstituição feita ‘in situ’ e multiplicam as reconstituições a cada dia de espectáculo. Como é que se vive psicologicamente isto de estar sempre a “viver” a mesma violência?Frederico Araújo, Actor: O mais difícil para mim foi a primeira vez que a gente reproduziu essa violência no Brasil, nas cenas que você viu no vídeo, o que eu vivenciei lá em Marabá. Porque além do contacto com as pessoas, com os sobreviventes, com as pessoas que fazem parte do movimento e pessoas que são amigas de alguns dos assassinados, ainda tem a questão do local, de a gente ter filmado e feito a coisa no lugar onde as pessoas foram assassinadas. Esse momento foi para mim um pouco mais difícil, até pela questão da chegada da polícia. Eu nunca falei isso nem para o Pablo, mas eu morri de medo...Que [o massacre] voltasse a acontecer?Frederico Araújo: Eu tinha medo de uma bala perdida, de alguém que não queria que a coisa acontecesse, que se misturasse ali no meio... E eu estava na frente. Eu não falei isso para ninguém, nem para o Milo [Rau], mas ali falei: “Meu Deus, tomara que não aconteça nada”. Ali foi o mais difícil para mim...Aí, a realidade, a ficção, o teatro, tudo se mistura, a realidade é que vem à superfície e você fica em risco.Frederico Araújo: Sim. Não houve uma interpretação de um medo. O medo era real e nem foi uma indicação de ninguém a dizer “Tem que ficar amedrontado”. Eu estava! E fazer aqui todos os dias, eu estaria mentindo se eu disser que é difícil como foi lá no Brasil. Lá, foi realmente difícil, eu não gostaria de fazer isso todos os dias. Aqui, como a gente tem que repetir, faz parte do nosso trabalho enquanto actor, de reprodução, reprodução, reprodução. A gente tem que entender internamente como é que a gente passa por essas emoções, como é que a gente conta essas histórias. Agora, o que é sempre complicado, mesmo aqui, repetindo nas apresentações, é lidar com esse tema, com esse conteúdo, com essas energias, com essas almas, com essas pessoas que não estão aqui, com essa história, é honrar os mortos. Então, isso eu tento fazer todos os dias, mas o trabalho mais complicado para mim foi a reencenação real no Brasil porque tinha essas camadas dos sobreviventes e do local.Vamos contextualizar para quem não viu a peça e não puder ver a peça. O que é que ela conta (porque tem várias camadas, mais uma vez).Pablo Casella, Músico: A peça basicamente tem três pilares. Ela tem a história da Antígona que a gente conta de facto, a história de Sófocles, a tragédia grega. Depois, tem a história do MST, principalmente focado no massacre, mas também em toda a existência do MST - tudo o que ele representa, a filosofia deles, o jeito que eles trabalham e o que o movimento representa. Tem um pouco da história do MST que também entra na peça. E tem o terceiro pilar que seria a questão da Amazónia e a questão indígena. Então, tem principalmente a questão indígena, mas também a questão da destruição da Amazónia num todo.A Antígona - representada por uma activista no vídeo e pelo Frederico em palco - ela simboliza “o não radical”: o não contra Creonte e o não contra o próprio Estado brasileiro...Pablo Casella: Sem dúvida. Eu acho que na nossa representação, a Antígona é o não contra o sistema e quando se fala em sistema, porque é uma coisa muito ampla, estamos focando na situação brasileira, no governo Bolsonaro, muito também, mas também no sistema da exploração da Amazónia, das companhias europeias destruindo a Amazónia, com a exploração do minério, da madeira, do agro-negócio e a violência policial. É também um não contra a violência policial que é o que o MST basicamente faz todos os anos no dia 17 de Abril, que é dizer que aqui houve um massacre da polícia, da violência da polícia contra trabalhadores desarmados numa marcha pacífica. Então, todos os anos, a gente [o MST] vai ocupar para dizer não a essa violência. O Movimento dos Sem Terra aceitou participar na peça, a partir do momento em que a peça fosse um “teatro de resistência”. Foi assim?Pablo Casella: Eu acho que o convite partiu do MST. O Milo [Rau] estava apresentando uma peça em São Paulo e o Milo já tem essa história de sempre ir para lugares de conflito e trabalhar os seus espectáculos ali. Tinha pessoas da direcção do MST que foram contactar o Milo e perguntaram porque a gente não faz uma coisa juntos. E depois, claro, com várias conversas, vários anos passaram até que se chegou à ideia de Antígona e a ideia do Pará para focar mais no massacre. Mas a ideia era fazer uma parceria do MST com o Milo.No livro “Para um realismo global”, de Milo Rau, ele diz que “não há nada mais novo do que o antigo”. Você aqui representa Antígona e também o irmão de Antígona, Polinice. Concorda que esta peça não poderia ser mais actual e que faz sentido ela transpor-se para Amazónia, que há a necessidade de um não radical na Amazónia?Frederico Araújo: Sim, eu acho que Sófocles e esses autores clássicos, Eurípedes, essa galera é meio vidente... Shakespeare, Tchekhov, Brecht, essa galera não estava só lá naqueles tempos, está no tempo de agora e está ainda no futuro. Acho que faz muito sentido sim. Agora, o que eu acho que é mais genial no trabalho é de actualizar a questão, actualizar a história para o que aconteceu no Brasil. Obviamente que também seria possível fazer um link com outras tragédias contemporâneas. Que bom que ele escolheu o Brasil – não no sentido que bom que houve o massacre, mas que bom que ele fez essa escolha pelo Brasil. É graças a isso que a gente está aqui contando a nossa história como brasileiros - não a nossa história porque eu não vivi isso - mas eu acho que sim, que revisitar o passado é uma óptima forma de a gente entender o presente.A maneira de trabalhar do encenador Milo Rau é incorporar-se no meio e fazer uma imersão total. Tanto é que houve um manifesto que ele escreveu em que ele proibia a adaptação literal dos clássicos e o texto original só deveria constituir 20% de representação. Como é que foi a criação desta peça, a criação da sua própria personagem, a criação dos diálogos? Vocês fizeram diálogos em conjunto? Frederico Araújo: O processo está no espectáculo final. O processo faz parte do produto final. A partir do dia 1 de ensaios, a gente tinha o texto de Sófocles, o original, digamos, mas eu tenho a sensação que tinha brechas e espaços para coisas novas entrarem e essas coisas novas entrando, eu acho que a gente não tinha uma busca de criar material dramatúrgico. É na própria vivência dos seres humanos, ao longo de dois meses, que coisas acontecem, que histórias são contadas e escritas e encenadas. A própria ausência da actriz que fazia Antígona, incorporada agora no produto final, era uma coisa que a gente nunca pensou.A Kay Sara [prevista inicialmente nas representações em palco]...Frederico Araújo: É um teatro muito vivo. É vivo no sentido de a gente lidar com os problemas e fazer uso do teatro para transformar esses problemas. A criação dos textos teve criação. O Pablo escreveu bastante texto. Eu, sendo muito sincero, não escrevi textos, eu dei pitacos [palpites], eu falei: “Ah, isso combina mais aqui, isso combina mais aqui”, eu troquei algumas palavras, eu troquei algumas frases. Mas a minha história biográfica, quando eu a conto, também foi um trabalho de genialidade do Milo. Foi ele que escreveu, a partir das entrevistas, a partir das trocas.Porque você diz na peça: “No Brasil, quando se é preto pode-se morrer a qualquer momento, por isso é que eu estou feliz por morrer em palco”...Frederico Araújo: Sim. Essa frase foi uma proposição minha. Mas o texto todo, ele chegou com uma página e a gente fez modificações ao longo. Mas o Pablo tem um trabalho autoral maior, de escrita de texto, maior do que o meu. Pablo Casella: Sim, mas foi uma parceria também com o Milo [Rau] e com a Marta [Kiss Perrone] e com o Giacomo [Bisordi]. A gente foi trabalhando os textos assim. O Milo dava muita liberdade para a gente trabalhar os textos. Às vezes, alguns textos nasceram de improvisação, outros de entrevistas. Então, você recebe o texto, tem a primeira ideia e você trabalha-o até onde ele está representativo do que você quer.Há uma das primeiras frases que você diz, que vem de Antígona, e que é marcante, que é: “Há coisas monstruosas, mas nada é mais monstruoso que o ser humano” e é uma das frases que o coro que você dirige na reconstituição no Brasil também canta. Porquê insistir tanto nesta frase?Pablo Casella: A grande ideia era mostrar como o absurdo do poder de Creonte é um traço humano. Ele vai contra a lei dos deuses e é a mesma coisa quando o [Ailton] Krenak fala que a gente está indo contra a lei da Natureza. O céu vai cair. Quer dizer, a nossa monstruosidade humana vai além da harmonia que existe na natureza e no universo. A peça passa toda por esse lado. O Creonte insiste numa autoridade que é monstruosa, assim como a polícia insistiu numa autoridade ao abrir fogo contra pessoas desarmadas numa estrada.E depois há o contraponto, que é quando vocês estão a fazer a reconstituição e chega a polícia, como o Frederico contou. Há uma activista que começa a falar com a polícia para explicar que vão só fazer a reconstituição e a polícia acaba por aceitar. Aí, ouvimos a frase: “Esta é a magia do teatro que resiste à violência ». No final do espectáculo, vemos também a frase “Isto não é o fim”. Ou seja, estas duas frases são autênticos manifestos políticos. O que é que elas querem dizer? Que o teatro pode ir àquele sítio onde a política não chega? Pablo Casella: Eu acho que não é o teatro que vai ao lugar. Eu acho que é o teatro como ferramenta de uma acção política. O MST é acção política. Tudo o que o MST vive é acção política. Não é só ocupação de terra, não é só uma marcha, é toda a filosofia do MST, é uma nova proposta de sociedade. Isso é uma acção política. O teatro é uma ferramenta super forte para isso e o MST acredita no teatro. O MST trabalha muito com o teatro. Quando a gente fala na magia do MST e na magia do teatro que resiste é porque muitos grupos de teatro podiam ter ido embora naquele momento, mas o MST fala que não, que a gente vai fazer isso aqui. Então, ela foi falar com a polícia, sabendo da responsabilidade e também do perigo - como o Frederico falou - de a polícia fazer alguma coisa. Então, tem aquele limite, mas, no final das contas, o MST sempre resiste e o teatro do MST também sempre resiste.E depois a questão do “Isto não é o fim”... Também tem a ver com o facto de que a peça não se encerra na própria peça porque vocês fazem acções para além da peça. Fizeram, por exemplo, uma campanha “Castiguem o Nutella”...Pablo Casella: Sim, mas eu acho que essa frase não é só isso. A campanha também é importante porque a campanha é mais representativa no sentido de a gente, quando vai num lugar, por exemplo, vai para o Brasil e tenta fazer um espectáculo, a gente quer que o espectáculo não seja o fim, que tenha continuidade e que a gente possa fazer alguma coisa mais contínua. Mas eu acho que essa frase, basicamente, o que ela representa, e que essa foi, inclusive, uma perspectiva do MST que disse: “Vamos fazer Antígona, vamos fazer uma tragédia grega, mas a gente do MST não acaba com o suicídio final, colectivo. A gente não acaba com todo mundo morto, porque a gente continua lutando. Então, a tragédia acaba, mas a gente continua”. Por isso é que quando você vê o espectáculo, o coro vai embora, o coro afasta-se da tragédia. O coro indígena também. Essa ideia do coro sempre indo embora da câmara é porque é essa ideia: o coro tem a luta para continuar a fazer. Então, a tragédia que acaba com a morte, para eles não existe, eles continuam.E vocês reinventam um novo final, um sexto acto. Pablo Casella: Exactamente, assim como a Ismene fala, a nossa luta só pode continuar se nos mantivermos vivos porque eles são contra a ideia de que a gente se suicida e que acabou. Eles nunca desistem. Então, “Isto não é o fim” é a mensagem que a gente está dando, não é a tragédia, é uma representação, é um simbolismo dessa luta de poder, mas o MST, os indígenas, a luta social no Brasil, ela continua, não acaba com um suicídio.Frederico Araújo: Eu vejo como uma esperança no futuro. Posso ser um pouco ingénuo, mas “Isso não é o fim”, para mim, é que o futuro cabe-nos a nós, agindo, mudarmos, e que outras pessoas não morram por serem pretas, trans ou defensoras do meio ambiente. Para mim, « isto não é o fim » é mais olhar para o futuro com um pensamento mais esperançoso.
7/16/202315 minutes, 30 seconds
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Histórias de um mundo "impossível" vibram em Avignon

A peça “Na Medida do Impossível”, de Tiago Rodrigues, leva ao Festival de Avignon, até 22 de Julho, histórias de guerra, violência e catástrofes contadas por trabalhadores em ajuda humanitária. Em palco, quatro actores, um baterista e uma tenda relatam um mundo que parece impossível aos olhos de quem assiste. A RFI falou com a actriz Beatriz Brás e o músico Gabriel Ferrandini. A peça “Na Medida do Impossível”, de Tiago Rodrigues, volta a estar em palco em França, desta vez na 77ª edição do Festival de Avignon, dirigida pelo encenador português. O espectáculo está em cena até 22 de Julho na Opéra Grand Avignon e foi incluído na programação depois do cancelamento de “Os Emigrantes”, de Krystian Lupa, que estava em construção na Comédie de Genève. “Na Medida do Impossível – Dans la Mesure de L’Impossible” foi justamente criada em 2022, na Comédie de Genève, e surge de três dezenas de entrevistas de trabalhadores em ajuda humanitária. É um manifesto político e poético, que põe a nu um mundo impossível onde a guerra, a fome, a violência são a regra, bem distante do mundo possível onde o espectador assiste, em segurança e confortavelmente instalado.RFI: E no final fica a música... Começa com vagas e transforma-se num tsunami. Que final é este? Gabriel Ferrandini, Músico: É uma viagem grande todo o espectáculo, as histórias e as sensações e a questão toda emocional. A ideia base do último solo era uma coisa incrível que o Tiago pensou, que parece uma coisa simples mas que tem um impacto incrível. O som tem uma presença, no espectáculo todo com eles, mas está a servir muito as histórias e a ideia do Tiago era que o último solo tinha que ser tão arrebatador ou violento ou de ter uma presença quase solitária que as pessoas podiam durante aqueles minutos esquecer. Porque é muita coisa para digerir, não é? São muitas histórias, é tudo pesado e era uma oportunidade, quase, para as pessoas poderem esquecer aquilo que se está a passar e quando o solo acaba poderem revisitar finalmente aquilo que se passou porque o último solo é bastante físico, não tem só a ver com bateria, tem a ver com as frequências graves e estas coisas que tu sentes no corpo, não é uma coisa que tem só a ver com os ouvidos. Mas, do meu lado, é sempre uma incógnita. Eu tenho a minha estrutura, mas nunca sei muito bem o que é que vai acontecer.Pode improvisar? Há uma estrutura, há uma coisa que eu tenho que seguir, há um início e há um fim, mas há espaço para improvisar e cada sala é uma sala e os públicos mudam e os nossos mundos mudam. Às vezes, até pode haver problemas e eu tenho que andar à volta disso e podes encontrar a musicalidade também dentro dos imprevistos.Uma das personagens diz: “Pode pedir ao público para imaginar, mas não se pode imaginar, é impossível imaginar. Impossível.” Quando as palavras não chegam, é mesmo a bateria que conta o indizível?Talvez. É uma coisa mais abstracta, não é? Eu acho que todas as pessoas podem retirar ou encontrar o que quiserem dentro dos sons. O que é que cada um sente com a percussão é uma coisa bastante... não é uma coisa tão estável como um instrumento harmónico, melódico e há pessoas que ouvem o coração, há pessoas que ouvem as bombas, há pessoas que ouvem os terramotos e esse é o lado engraçado desse indizível, as pessoas encontram o que quiserem.Até porque a personagem da Beatriz diz: “Deveria mostrar que a explosão de uma bomba faz exactamente o mesmo barulho que um coração que bate, só que é mais forte”. A bateria também faz isto?Sim, talvez, está tudo muito misturado, acho que isto foi uma grande sorte podermos trabalhar como trabalhámos e como tivemos muito tempo juntos e fizemos a criação juntos. Para nós, é engraçado porque isto é uma questão que existe, esta conversa que estamos a ter agora, mas para nós foi sempre uma coisa... Somos cinco, não quatro e mais um, somos mesmo cinco. Então tudo se mistura.A Beatriz Brás canta um fado que deixa uma textura densa de emoção no teatro. Porquê este fado?Beatriz Brás , Actriz: O Tiago [Rodrigues] sabia que eu gostava de cantar e já me tinha ouvido cantar fado e estávamos uma vez em Genebra - onde foi a criação, na Comédia de Genève - estamos uma vez a beber uns copos na casa do Gabriel e o Tiago quis muito que eu cantasse para o Gabriel ouvir. Foi aí que se decidiu que este fado fazia sentido de ser integrado no espectáculo. Este fado foi integrado numa história que é real, mas as duas coisas não se ligam na realidade. Foi uma ligação fictícia que o Tiago fez, tal como outras coisas no espectáculo, outras narrativas, e penso que, tal como a bateria, dá uma outra dimensão, uma outra textura ao espectáculo, e dá também uma outra componente através de uma outra língua, de uma outra cultura que, neste caso, é a portuguesa. Eu não falo em português no espectáculo, falo em inglês, mas acho que através deste fado podemos adicionar mais outra língua que acho que também é uma coisa que interessa ao espectáculo, esta multiculturalidade. Portanto, acho que é um momento também abstracto porque é musical, mas também sobre o medo. O conteúdo do fado fala sobre o medo e, portanto, está relacionado com o espectáculo e sobre os desafios que estes humanitários atravessaram.O que quer dizer “Na medida do impossível?”Eu acho que isto brinca um pouco com a expressão “na medida do possível” e o Tiago pegou nesta expressão e faz aqui o paralelo entre o mundo possível e o impossível. Sendo que no próprio espectáculo ele próprio comenta este lado redutor do lado binário das coisas. Não é só os opressores e as vítimas. Não é só o possível e o impossível, as coisas não são preto ou branco. Mas podemos brincar com estes conceitos e ao brincar com eles podemos ver que, se calhar, há lugares em que temos um conforto como este aqui - estamos em Avignon a ver um espectáculo, confortáveis - e temos lugares em que as coisas parecem de um mundo mais distante do nosso, um bocado um mundo impossível, em que faltam os bens necessários, em que as catástrofes acontecem no dia a dia com uma regularidade que não é a nossa, numa realidade que não é a nossa. Então, acho que há este paralelo entre o mundo possível e o impossível, sendo que o possível se pode tornar impossível muito facilmente.E a qualquer momento...E a qualquer momento, sim.Descrevem situações limite e conflitos muito para além do que os olhares do mundo ocidental estão habituados a ver. Quais é que foram os maiores desafios neste trabalho de actor?Manter a simplicidade que o espectáculo exige. O desafio para mim é manter-me com as histórias, ouvir a história que estou a fazer, ao mesmo tempo estes textos não têm um lugar sagrado. Nós pegamos em relatos reais de trabalhadores humanitários mas isto é um espectáculo e há que ter também a liberdade para jogar, para dar outras texturas, dar outra força, brincar com os tons e podermo-nos distanciar daquilo que vivemos que foram as entrevistas com estes trabalhadores, com todo o respeito. Para mim, o desafio é o equilíbrio entre manter a simplicidade, dizer só esta história, mas também poder encontrar-me através disto. Ou seja, o que eu quero dizer é: eu tenho esta imagem desta personagem que estou a fazer mas, entretanto, já não é sobre esta pessoa, eu tenho estas palavras e agora como é que eu me relaciono com estas palavras sendo que é uma realidade que não é minha, eu nunca vou poder saber, mas como é que isto ecoa em mim.Apesar de a distância ser supostamente o seguro de saúde mental do actor quando representa algo impossível, como é que se sai de uma peça destas enquanto pessoa?Eu acho que me empresta um distanciamento aos meus problemas - que são legítimos, mas são os meus problemas - e poder revisitar estas histórias de cada vez que fazemos este espectáculo é como ganhar outra perspectiva. Eu não deixo de ter os meus problemas, mas sei que há outras coisas a acontecer no mundo. Isso é importante para ganhar outra dimensão.Quando houve as entrevistas aos humanitários, vocês participaram todos ou foi só o Tiago Rodrigues? Não, não. Participámos todos. Sim. Inclusive o Gabriel.Como é que foi esse processo? Também deve ter sido muito duro...Gabriel Ferrandini: Pois, é impossível ficar indiferente, não é? Nós, na altura, acho que foram duas ou três semanas só de entrevistas, e teve o seu lado quase meio jornalístico incrível e também teve um lado meio horrível porque ou são pessoas a explodir ou crianças a morrer... Lá está, nós tocamos neste material e estamos à procura de nós mesmos, mas eu acho que de certa forma também mudou-me um bocado. As pessoas que nós conhecemos, as histórias que nós ouvimos e a responsabilidade agora de ... Porque não é uma apropriação, ou pelo menos estamos a tentar que não seja, mas é uma responsabilidade muito grande porque estas pessoas, muitas delas, não têm voz e nós vimos o quão disponíveis e fascinadas elas estavam de finalmente haver pessoas que querem ouvir. E a própria peça fala disto. Como aquela história da família, eles estão a beber copos e, de repente, quando conta uma história, a festa acaba. E estávamos ali nós super disponíveis para ouvir estas histórias.  De repente, agora, vens aqui, e isto tem um peso brutal e esse peso foi-nos transmitido, não é?Falou da responsabilidade. A peça insiste na ideia de que “Vou salvar o mundo; não posso salvar o mundo; o mundo não pode ser salvo”. A peça, em si, pode salvar alguma coisa?Isso acho que é a grande questão sempre da arte e desta coisa de - eu nem sei se isso existe - de salvar ou não salvar. Porque o salvar o mundo é uma coisa demasiado gigantesca e abstracta. Só que aqui, de repente, não é. Realmente estamos num palco, estamos duas horas num palco e eu estou em palco. E as pessoas estão aqui e esse momento de troca é mesmo real. E não há volta a dar e é aí que vem a responsabilidade. Eu estou aqui a falar sobre isto e eu tenho mesmo que falar sobre isto. Eu lembro-me das caras das pessoas com quem estivemos e lembro-me da cara da Beatriz quando ouviu uma história. Todos nós estávamos não só a ouvir isto, mas também a ter estas coisas dentro de nós e isto depois é este tal jogo de como ser mais ou menos fiel à realidade. Mas, de repente, isto é uma cena completamente humana. Estamos a falar de hipocrisia, de desespero, de esperança, de depressão. Isto não é só deles, dos humanitários. Isto é uma coisa comum a todos nós, não é?Até que ponto é finalmente ético fazer um espectáculo sobre o sofrimento dos outros?Esse é o lado perverso da arte, não é? Ou pode ser. No fim estamos a ser aplaudidos. Na sociedade do espectáculo é um bocado impossível fugir ao aplauso. Este um espectáculo. É importante ter esse pudor, esse respeito, sem ter a questão “Coitadinhos, são os humanitários, temos de ter um respeito e não se pode brincar com isto ou não podemos ter a liberdade para também a partir daqui extravasar para outros sítios”. Claro que sim. Eu acho que é assumir que essa perversidade existe. Há pessoas que estão confortáveis a ver um espectáculo. Nós não estamos a viver a catástrofe do outro, mas podemos ter compaixão, podemos ouvir, podemos escutar outras realidades, ter acesso a elas sem, por isso, ser perversos, sem por isso desejar mal ao outro ou lucrar com isso no sentido mau da palavra.Também podemos sair transformados de um espectáculo...Beatriz Brás: Claro que sim, mas isso aí não está no nosso controlo.Gabriel Ferrandini: Estamos a tentar, não é?Beatriz Brás: Sim, isso é discutível, mas sim, claro.Gabriel Ferrandini: É uma questão interessante e, se calhar, não respondendo directamente, mas há uma coisa que o Tiago é de uma inteligência fora do normal e esta coisa do Impossível tem um bocado a ver com isso, que é: se nós dissermos a guerra aqui ou a catástrofe ali ou os coitadinhos dali ou os corajosos dali... O Tiago põe o carimbo do Impossível: nós fomos ao Impossível, nós viemos do Impossível e esse jogo é, na verdade, a dizer que estamos todos a sofrer, eu acho que a peça está a tentar falar disso. Isto, no fim do dia, até pode nem ser sobre os humanitários. Estamos a falar sobre desespero humano porque ele diz “há crianças”, mas crianças de onde? O que é que aconteceu? Não estamos a dizer a geografia. Quando o Tiago, de uma forma incrível e muito elegante, agarra nesta coisa do Impossível, eu acho que está a aproximar em vez de nos estar a afastar. Não deixa de ser uma coisa política, mas sem falar sobre as ferramentas muito exactas, está a falar do “backstage”.Como é que se transporta todo esse desespero, toda essa desilusão para a música? Como é que compôs para este espectáculo?Para ser sincero, eu hei-de ter uma coisa que há-de ser a minha linguagem. E as coisas que eu opto por usar e não usar e, no final, foi só uma espécie de adaptação de uma parte do que eu faço com este tipo de material. O mais incrível e a grande lição que eu tive aqui - porque é sempre um grande medo de cair numa coisa muito estética porque se pode cair num vazio - aquilo que a mim ajudou mesmo para fazer aquilo que viste hoje são as histórias. Portanto, é o lado emocional de como é que eu me senti e não precisa de ser uma coisa tipo: “Ah, estão a falar de uma bomba e eu faço um som de uma bomba.” Não. Como hoje, foi um espectáculo que eu acho que correu-nos bem e saímos, pelo menos eu, meio emocionado, electrificado porque são estes momentos raros, são estes pequenos milagres de perceber que realmente isto vem tudo do mesmo sítio, aquelas pessoas com quem nós falámos, a música que eu quero fazer, as coisas que o Tiago está a tentar falar, o fado a falar sobre o medo. A Amália Rodrigues já escreveu isto há...  Isto está tudo ligado, não é? E, para mim, foi mesmo muito natural chegar a este sítio que viste hoje.
7/14/202316 minutes, 17 seconds
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"A imaginação é uma arma" no "Jardim das Delícias" de Avignon

“Le Jardin des Délices”, do encenador francês Philippe Quesne, é descrito pelo Festival de Avignon como “uma epopeia retrofuturista, entre bestiário medieval, ficção-científica ecológica e western contemporâneo”. Este é “um jardim das delícias” surrealista, num espaço natural, e inspirado numa pintura de Jérôme Bosch. Um dos actores é o português Nuno Lucas que canta “Inquietação”, de José Mário Branco, porque diz que o espectáculo é “uma viagem pela imaginação” e “a imaginação é uma arma”. RFI: Esta peça descreve “uma inquietação” como a música de José Mário Branco que canta? Quem é que escolheu a música? Nuno Lucas, Actor: Na verdade, fui eu que escolhi a música porque, de facto, considero que a peça tem algo de exploratório, de indefinido e, por isso, para além de ser um grande fã de José Mário Branco e de achar que essa canção se adequa muito àquilo que estamos a fazer porque chegamos com este autocarro num sítio árido, no meio de nada. Então, de repente, essa viagem contém também todas essas inquietações, essa eterna procura, mas ao mesmo tempo não há um fim, é quase como um movimento perpétuo. E por gostar muito desta canção. Então, tem estas duas coisas e o Philippe [Quesne] teve a sensibilidade de perceber e depois também tive a possibilidade de traduzir, claro, porque é em português.“Há sempre qualquer coisa que está por acontecer, qualquer coisa que eu devia perceber”, diz a canção... Como é que se percebe, e se quer fazer perceber, a história desta peça? Esta peça é inspirada, ou tem como ponto de partida mais do que como inspiração global, um quadro do Jérôme Bosch, o “Jardin des délices”, daí o nome da peça. O que acontece é que o encenador, Philippe Quesne, ele também é cenógrafo e parte muito do visual. Normalmente, instalam uma situação num lugar e, a partir daí, muitas coisas acontecem. Por isso é que eu digo que é inspirado. Daí que é uma pincelada para explorar diferentes partes, de poesia. O quadro, em si, é muito rico e é muito complexo. É um tríptico e nós tivemos a oportunidade de o ver. Ele tem muito detalhe e, por isso, é fazer uma peça que não seja literal, mas que utilize essas diferentes dimensões, esse tal surrealismo. É uma peça que, na verdade, é quase um convite à imaginação. É o que eu acho porque eu acho que esta peça não tem uma interpretação, não tem um ponto de vista. É uma proposta que se coloca na mesa para tentar ser compreendida. Tal como o quadro porque o quadro, depois de todo este tempo, também não tem uma solução, não tem uma resolução, não tem um ponto de vista, contém toda essa complexidade e dificuldade de símbolos. Daí, há várias coisas que que a peça tem.O “Jardim das Delícias”, de Bosch, remete para um momento de transformação radical entre dois mundos na altura em que foi pintado, entre o Gótico e o Renascimento. É o que está a acontecer hoje com todas estas alterações climáticas, com a urgência ecológica? É o que vocês querem, de certa forma, também sugerir? Eu penso que estamos, de facto, a viver um momento interessante porque é bastante indefinido. Daí também transitório. Acho que nós não temos a pretensão de dar uma resposta mas, para encontrar novas soluções, a imaginação é uma arma tal como a canção do José Mário Branco. Daí eu achar que, se calhar, a nossa única contribuição possível é a poesia, tudo o que nos permite criar outros mundos ou outras possibilidades, outras realidades a partir daquilo que é, hoje em dia, talvez uma concentração no concreto, na eficácia, naquilo que parece estanque.Disse que sugeriu a canção “Inquietação”. Como é que construíram as personagens? Tiveram uma certa liberdade ou foi o encenador que chegou com os papéis?Esta é a primeira criação que eu faço com ele, apesar de já ter participado em outras peças. Mas tem essa característica de ser bastante colaborativa. Somos todos que contribuímos e que criamos a peça. Ele cria um contexto, ele é muito forte na criação desses contextos, da cenografia, das qualidades de objectos, de intenções mas, depois, tudo vem muito dos actores também. Por isso é que se vê também toda esta complexidade, diferentes pontos de vista. Esta peça parece que até é um hino à diferença. Pronto, uma diferença relativa porque é sempre no mundo actual e é muito difícil de representar a complexidade, mas a peça tem essa qualidade. Daí quando nós criamos os personagens, há uma grande responsabilidade de cada actor de trabalhar e de ir afinando. Depois, é toda uma máquina que vai ser construída, mas é uma maneira muito clássica ou quase antiga de colaboração criativa de escrita. Há elementos centrais e enigmáticos na cenografia, nomeadamente, um ovo gigante, depois aparece outro ovo gigante, o autocarro... Os ovos estão no quadro do Jérôme Bosch... Qual é a simbologia? Eu tenho que, se calhar, contextualizar aqui, ou seja, são os 20 anos da companhia de Philippe Quesne, a Vivarium Studio. Então, há também um desejo de revisitar algumas peças antigas. Uma das últimas peças, e em que eu participei enquanto actor, é a “Farm fatale” e acaba precisamente com um conjunto de ovos que partem numa direcção. Ele tem por hábito ou tradição, muitas vezes, de utilizar o fim de uma peça para o princípio da próxima. Daí que aqui também, de alguma maneira, faz sentido porque existem ovos dentro do quadro do Jérôme Bosch. Também há uma parte no quadro que nós gostamos bastante que é uma altura em que há um conjunto de pessoas que entram para dentro do ovo. Portanto, é quase como reiniciar.  Como vocês quase representam no final...Exacto. Há qualquer coisa de criação, qualquer coisa que pode ser até já fossilizada, portanto, já não tem vida lá dentro mas teve vida. Contém coisas lá dentro, um passado... Enfim, há um lado bastante simbólico, de facto, eu acho que talvez é o elemento mais forte.  O autocarro é, de alguma forma, uma referência também a uma peça emblemática que é “La Mélancolie des dragons”, em que existia um Citroën, uma viatura mais pequena. Então, há assim um “clin d’oeil” a algumas peças precedentes. Por isso é uma peça que tem várias portas e janelas. Outra porta são as citações de “O Inferno” de Dante. Depois, a dada altura, uma das personagens que diz: “Se calhar a Terra é o inferno de outro planeta”. Esta frase resume, de certa forma, todas estas pinceladas que são dadas na peça?O lado bastante árido da Carrière de Boulbon, que é uma pedreira que tem este aspecto muito bonito, mas também há um lado humano de intervenção. Ou seja, a natureza dá este lado deserto, de uma inexistência de água, há um lado que facilmente evoca uma possibilidade de inferno, esse calor... E quem viu a peça aqui, e chegou aqui antes, sente todo esse calor e esse inferno, mas é uma questão que fica no ar. Não há “soluções”. Há pensamento. E o espaço? Este é um espaço histórico. A Carrière de Boulbon esteve fechada ao festival durante sete anos, reabre este ano e o Nuno Lucas está aqui. O que é que representa para si, enquanto homem do Teatro, estar aqui num espaço emblemático inaugurado por Peter Brook há quase 40 anos? É muito bonito porque, por um lado, há uma exigência porque há um legado do Peter Brook de quem eu gosto muito, que influenciou também a minha maneira de representar ou de estar ou de pensar, “The Empty Stage”, o espaço vazio... É claro que há também estes fantasmas que trabalhamos, este passado que também temos que lidar com ele. Não chegamos aqui e ocupamos o espaço. Este lugar, mesmo geologicamente dá para ver como é uma pedreira, as várias camadas do tempo. Então, poder também pertencer e participar, eu confesso que todos os dias venho aqui, olho para o espaço e penso: Vou-me lembrar deste espaço. Há já uma memória no presente porque é uma coisa estranha de já pensar num passado que é presente.Saudade?Parece que sim. Há qualquer coisa.Em relação ao trabalho com o encenador Philippe Quesne. Já esteve numa peça anterior, agora está nesta. Como é que surgiu essa colaboração? Bom, eu sempre gostei muito do trabalho dele e, timidamente, lá ganhei coragem um dia para lhe dizer que gosto do trabalho dele e que me inspira bastante. Nesse sentido, como também muitas vezes circulamos em festivais com outras peças, por exemplo, foi o caso com Joris Lacoste que é um encenador francês, cruzamo-nos em lugares e vão-se criando afinidades e, muitas vezes, são coincidências e sortes. Eu acho que na vida nós também sabemos que há certos lugares a que pertencemos e eu sabia que trabalhar com ele é um lugar muito natural. Daí que - pode acontecer ou não, neste caso acontece - e eu estou muito feliz. É uma grande honra para mim poder, de facto, fazer parte desta peça, de trabalhar com ele e estou muito feliz. Estou muito feliz, sim, confesso.Está, pela primeira vez, no Festival de Avignon?É a primeira vez, sim, e eu nem sequer tive a oportunidade de ver o festival antes, por isso, entro um bocadinho de rompante. Nós estamos tão absorvidos aqui, nós estamos em Boulbon, a 14 quilómetros de Avignon, não tive oportunidade de ver espectáculos porque estamos muito focados em fazer isto neste momento. Mas, sim, é uma grande alegria, naturalmente, ainda por cima com o Tiago Rodrigues na direcção. É uma bela coincidência. Depois deste espaço mítico, onde é que vão representar uma peça que exige tanto espaço?Ainda vamos para outro espaço mítico. Vamos à Acrópole de Atenas. Aqui são 1200 espectadores, lá serão 3.500. Eu acho que é uma peça que propõe sempre um desafio. Depois dessas representações em Atenas iremos à Trienal de Duisburg, na Alemanha. Aí sim, é o primeiro confronto de adaptação da peça a um espaço teatral. Eu acho que há sempre coisas a ganhar e a perder, há uma qualidade que o teatro tem, o silêncio, que um espaço aberto não permite necessariamente porque é tão potente e é tão forte a natureza que dispersa às vezes. É uma questão sonora também. Estou muito curioso para saber como é que a peça vai acontecer, mas eu acredito por experiência, profundamente, eu até acredito que vai ser mais interessante.“Le Jardin des Délices” está no Festival de Avignon até 18 de Julho.
7/11/202315 minutes, 2 seconds
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“Exit Above”: Tempestade de movimentos entre “blues” e “rave”

“Exit Above - after the tempest” é um espectáculo de Anne Teresa De Keersmaeker, em colaboração com a cantora Meskerem Mees, o compositor Jean-Marie Aerts e o bailarino e músico brasileiro Carlos Garbin. A obra está em cartaz no Festival de Teatro de Avignon até 13 de Julho e é uma partitura dançada, entre blues e música electrónica. A RFI falou com Carlos Garbin que também entra em “En Attendant”, um espectáculo da coreógrafa belga que esteve em Avignon há 13 anos. RFI: Que história conta este espectáculo ?Carlos Garbin, Músico e bailarino: Tem várias histórias juntas. Pelo lado musical, eu diria que é a evolução da história da música gravada, do começo dos anos 20, quando a música começou a ser gravada, até à música electrónica. A Anne Teresa queria que fosse um trabalho com música pop. Então, a gente pegou a história do começo das primeiras gravações, como influência, até à música mais electrónica. A gente fez essa mistura.O espectáculo, que também se inspira de “A Tempestade” de Shakespeare, parte da canção “Walking Blues”, de Robert Johnson, a marcar o compasso dos corpos, mas depois temos a música eletrónica a electrizar esses mesmos corpos. As canções são interpretadas pela belga Meskereem Mees, acompanhada por si na guitarra. Como foi a criação e composição das músicas para o espectáculo?Foi muito legal porque eu e a Meskereem não nos conhecíamos e a gente não sabia o que ia acontecer da nossa relação. A gente nunca tinha feito música juntos. A Anne Teresa, no começo, convidou-a para fazer as gravações, para compor a música, mas ia ser música gravada, e aí a Meskereem disse que gostaria de participar no espectáculo, que também gostaria de dançar.Então, eu fui convidado para fazer parte do espetáculo - porque eu já era bailarino da companhia, mas agora estou mais como freelance - e voltei para essa peça porque eu toco violão também. Eu toco “blues” bem ao estilo do Robert Johnson que ela queria ter como influência. Então, fechou bem perfeito.E encaixou também com a voz “blues” da própria Meskereem Mees...Isso. A gente não tinha ideia do que ia acontecer, mas desde o começo foi muito fácil para eu ir a Meskereem fazermos música juntos. A gente cada vez que ia para o estúdio, compúnhamos uma música e fizemos muito mais do que está no espectáculo. Todo os dias, a gente vinha com uma ideia nova e foi uma colaboração muito boa.É um espectáculo de dança, mas a música está no centro da criação e dá o ritmo. É como se fosse o Carlos Garbin o maestro da dança. Mas os corpos são caixas de ressonância que acrescentam música à sua música. Faz sentido esta leitura?Acho que sim, principalmente no começo é isso que está acontecendo mesmo. Eu estou dando o ritmo para essa caminhada e é uma caminhada que se desenvolve. Começa com passos simples e vai se transformar numa dança. Depois, quando vem a música electrónica eu também estou marcando o tempo e os bailarinos estão dançando. Então é, eu tenho meio esse papel. Depois, em função das diferentes músicas, também há coreografias completamente diferentes.É preciso dizer que o Carlos e a própria Meskereem também entram nessa dança colectiva, nesse furor ou acalmia...A Meskereem nunca tinha dançado antes e ela está dançando muito bem. Ela aprendeu, ela improvisa e ela faz também as frases coreográficas que os bailarinos estão fazendo.  É bem impressionante.É um espectáculo de dança, mas a música está no centro da criação e dá o ritmo. Na apresentação do espectáculo lemos: “Se não podes falar canta. Se não podes cantar, dança”. Este espectáculo é uma forma de resistência? Contra o quê?Eu não sei contra o quê, mas eu acho que é mais uma força de a gente estar juntos e a gente ter a nossa força junto com o ritmo. É um poder da gente, do grupo.O Carlos Garbin já trabalhou com Anne Teresa De Keersmaeker em peças que já exploravam as relações entre música e dança... Eu trabalhei com Anne Teresa desde 2009. Fui bailarino da companhia por muito tempo e trabalhei com ela em vários projetos. Fiz ‘The Song’, foi a primeira peça que eu fiz com a Anne Teresa e eu já toquei violão na nessa peça. Também “En Attendant” que vai estar no festival [de Avignon]. Fiz em torno de sete, oito peças com a Anne Teresa.Como é que é trabalhar com Anne Teresa De Keersmaeker, uma referência no mundo da dança e que coloca a música no centro da sua criação?Na realidade, eu fui para Bruxelas para estudar na P.A.R.T.S. que é a escola da Anne Teresa e fiz quatro anos de escola. Formei-me em 2008. Em 2009, entrei na companhia Rosas e estou até hoje. Então, é uma história de quase 20 anos que eu já desenvolvi com a Anne Teresa em diferentes aspectos. Primeiro, sendo um aluno da escola, depois um bailarino da companhia e é uma relação que vem dando muitos frutos. A gente fez várias peças juntos e é uma relação que se vem transformando porque comecei como estudante, depois fui bailarino da companhia, agora estou como músico e compositor e a gente já fez projectos pequenos. Às vezes, a gente vai tocar num bar, a gente ensaia algumas músicas juntos e temos essa relação bem próxima.O Carlos Garbin é também bailarino e coreógrafo, além de ser músico. De certa forma, a composição coreográfica é a continuação lógica da composição musical? É, tem influência. É como a caminhada do começo. Ela [Anne Teresa] falou que ela queria ter loops, uma repetição. Então, todas as frases coreográficas, eu trabalho bastante com repetição, cada bailarino criou o seu “loop” que é uma coisa que se repete. A frase de um conecta com outro, dá a variedade, mas vem tudo do passo, da caminhada, desenvolvendo dali para a dança. A música veio da mesma maneira. A gente começa só quase com a batida, só alguma coisa rítmica que, aos poucos vai apresentando mais melodia e mais variação harmónica. Do mesmo jeito, a dança também se desenvolve nesse trabalho.A coreógrafa Martha Graham dizia que “o teatro era um verbo antes de ser um nome”... Este espectáculo vem confirmar o papel central da dança nas artes do palco? Para mim, a música e a dança estão tão juntas que eu não tento separar. É tudo uma coisa. Para mim, a música ajuda-me muito quando estou dançando. Quando eu estou fazendo música, a dança também me ajuda muito. Também estou fazendo teatro quando estou dançando. Também estou fazendo música quando eu estou dançando. Para mim está tudo ligado, cada coisa tem a sua especificidade, mas acho que também eu não tento me apegar tanto a isso. É mais integrar. Para mim, acho que é mais importante integrar, quanto mais eu puder integrar, mais camadas eu vou ter de profundidade. Tento unir todas essas coisas, a dança, a música, o teatro.Os próprios estilos... Passamos do blues à música electrónica, dois mundos à partida distintos, mas há uma linha que os une. Acho que sim, principalmente com o ritmo porque as músicas electrónicas, num processo do Jean Marie [Aerts], começou como sendo bem repetitivo, com pouca variação e, aos poucos, como no projecto da coreografia também, ele foi acrescentando mais camadas, mais instrumentos, mais camadas. Foi-se tornando mais complexo. E a música também, começando só com o ritmo e a música do violão e, aos poucos, ia-se acrescentando...Ao ponto de nos perguntarmos se estamos num blues electrónico...É. E quando eu toco só guitarra eléctrica, fica só o barulho eléctrico muito alto, com microfonia, passando dos sons da natureza, de uma brisa que a gente não sabe se está escutando ou se não está escutando, uma coisa bem subtil, ao instrumento sozinho, só quase acústico, à voz sozinha, juntando-se também à música electrónico e até ao barulho e caos total.E depois há elementos externos que se acrescentam ao próprio corpo, por exemplo, quando um dos bailarinos agarra no cabo do microfone e dança com ele... Além de os próprios bailarinos imitarem sons da natureza... Isso também fez parte da vossa composição? Também trabalhou este aspecto musical?Com certeza. Os elementos da natureza, o vento e o som dos passarinhos, a gente faz com o nosso corpo e a gente pode fazer também com a tecnologia, com o microfone a rodopiar. Há um contraste também subtil de quase nada acontecendo para muita coisa acontecendo, muita informação, volume e diferença de volume.O Carlos Garbin já esteve em Avignon...É a terceira vez que eu estou a participar no festival. A primeira vez foi em 2010, na estreia do “En Attendant” que foi uma peça que fez muito sucesso até depois.Tanto é que voltou este ano...Por muitos anos a gente dançou essa peça que é a peça que a gente faz no pôr do sol, a peça é ao ar livre, começa no pôr do sol e vai ao anoitecer. No ano seguinte, a gente fez “Cesena” com a estreia aqui também, que a foi a peça que a gente fez ao amanhecer. A peça começava às cinco da manhã no escuro e a coreografia aparecia ao contrário de “En Attendant”. Agora, é a terceira vez que estou participando com o “Exit Above”. Na semana que vem, a gente vai estar refazendo o “En Attendant” 13 anos depois da estreia aqui.É representativo e simbólico?Sim, é. O “En Attendant” foi a segunda peça que eu fiz com a companhia Rosas depois de todos esses anos. Estar a apresentar aqui um trabalho novo como bailarino e músico e também ter a oportunidade de fazer um trabalho que eu fiz há muitos anos é muito gratificante.
7/8/202313 minutes, 11 seconds
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História da emigração portuguesa para França chega a Avignon

A peça “Saudade, ici et là-bas” conta a história da emigração portuguesa para França nos anos 60 e 70 e como os lusodescendentes cresceram com uma dupla cultura. É também uma história de transmissão, de memória e de heranças afectivas. O espectáculo está no Festival Off Avignon de 7 a 29 de Julho e a RFI falou com a sua autora Isabel Ribeiro e com o músico Dan Inger dos Santos. RFI: O espetáculo fala de emigração portuguesa mas abre com a saudade da cabo-verdiana Cesária Évora. Porquê?Isabel Ribeiro: Nessa canção, eu acho que há uma dimensão que reflete bem o que é a saudade e que possa ser transmitida a pessoas que não sabem a definição exacta da palavra saudade. Eu até acho que só os portugueses é que entendem mesmo o que saudade quer dizer e fora já não, eles querem uma coisa mais específica, mais detalhada. Essa canção tem essa atmosfera que traduz a definição dessa palavra.Qual é a história de “Saudade, ici et là-bas”?Isabel Ribeiro: É uma viagem de dois irmãos, o Idálio e a Joana, que estão em Portugal para vender a casa da família porque os pais faleceram e eles tiveram que tomar essa decisão de vender a casa. Então, estão lá em Portugal, com o sobrinho deles que vem da Bélgica. Aí começam a falar da casa, das lembranças que eles têm, da ligação que eles têm com essa cultura portuguesa, da lembrança dos pais. Na segunda parte da peça de teatro, vamos ao passado e aí vemos os pais antes de irem embora de Portugal. A vida deles em Lisboa e essa tensão antes de irem embora.Porque decidiu escrever e levar a palco um espectáculo sobre os portugueses que vivem em França? É um texto biográfico?Isabel Ribeiro: Sim. Há muitas coisas que são da minha história e outras que são coisas que eu ouvi porque tive a oportunidade de fazer entrevistas a pessoas. Escutando as histórias todas, pensei que é mesmo uma parte histórica de França e que temos que transmitir porque não falamos muito nesse tema. É muito importante. É um tema que me tocava desde sempre mas, crescendo, tinha essa vontade de falar e de testemunhar o que é ser um filho ou uma filha de emigrante e como é que vivemos essa situação de ver os pais partilhados entre a vida que eles vivem em França e as lembranças todas e a vontade de irem embora para Portugal.Qual é a mensagem do espetáculo? Uma homenagem aos emigrantes?Isabel Ribeiro: É. Porque é uma geração que falávamos deles com uma comunidade silenciosa e, para mim, é uma comunidade que teve muito muita força, muita coragem de ir embora do país deles e não falamos muito neles. Eu queria justamente agradecer-lhes a todos, aos meus pais, à família e também aos outros à volta, por esse sacrifício porque graças a eles nós temos uma vida diferente e mais fácil. A peça também quer mostrar o que é viver entre dois mundos, em busca de raízes, mas também a tentar transmitir essas mesmas raízes às gerações de agora e às futuras?Dan Inger dos Santos: As novas gerações não sabem muito porque a primeira ficou com pudor. Esse pessoal queria esquecer o salto [passagem clandestina para França] e a vida dura desse momento quando chegaram nos bairros de lata. Para mim é um reconhecimento que é dado ao povo português, mas que pode ser uma mensagem também muito universal e tocar também o coração dos italianos, dos espanhóis, dos argelinos… Ambos são franco-portugueses e o tema da dupla cultura dos filhos de portugueses que vivem em França é-vos intrínseco. O tema já foi tratado – antigamente menos, mas agora começa - em filmes, em livros, em fotografia… O que acrescenta o teatro a esta história?Dan Inger dos Santos: Até agora, o teatro português é muito elitista, só toca o pessoal que conhece mesmo o âmbito do teatro. Penso que a nossa ideia era dar coisa mais popular. Muitas pessoas vêm depois do espectáculo dizer que era a história deles que estava no palco. Não conheço todas as peças de teatro, mas acho que é a primeira, de facto, em França a ser um pouco mais popular e acessível.Isabel Ribeiro: Também é verdade que, pelo facto de estar em palco, há uma coisa que se passa em directo com as pessoas. No cinema, o ecrã traz um relacionamento diferente à situação que se está a passar mas no teatro é tudo ao mesmo tempo. Nós queríamos tocar as pessoas em directo e o teatro tem essa possibilidade. Este é um espectáculo musical. A Isabel escolheu fazê-lo com o Dan Inger dos Santos para trabalhar consigo. Como é que construíram essa parte musical? Como fizeram a escolha do repertório? Isabel Ribeiro: Primeiro, eu escolhi as canções. Um certo número de canções que me tocavam, mas que tinham, não é bem um relacionamento com o tema, um pouco, mas era uma coisa que se passava em mim e que até me ajudava na escrita. E depois eu escrevia à volta dessa canção e via que tinha coisas na canção que podiam ligar-se. Depois disso ao Dan: “Quero essas canções. Que pensas tu?” E ele até gostou!Há Amália Rodrigues, Zeca Afonso, António Variações, Cesária Évora, Mayra Andrade… Vocês interpretam estas músicas em palco. Como foi esse trabalho?Isabel Ribeiro: Quisemos trazer a lusofonia para o palco e tivemos ensaios.Dan Inger dos Santos: De facto, era dar os temas à nossa maneira e que podiam entrar na história. E foi a escrever a história, mesmo o nosso colega belga por ser belga há coisas que foram escritas quase para ele.Depois, há a própria escolha dos instrumentos. Há concertina, guitarra e um instrumento de cordas em que se dá também à corda. Que instrumento é? Dan Inger dos Santos: É um instrumento medieval que a gente pode encontrar também na música tradicional portuguesa. O último tema, por exemplo, “Horizonte”, dá uma piscadela aos navegadores e não é um instrumento que a gente ouça todos os dias. Em termos cénicos, quais foram as escolhas para sustentar essa ideia de viver entre dois mundos? Há o desenho de som com os sinos da igreja que me remetem imediatamente para as aldeias portuguesas com melodias reconhecíveis, mas também há projecção de fotografias dos bairros de lata de Gérald Bloncourt. Porquê essas escolhas?Isabel Ribeiro: Eu queria que esse espetáculo fosse em muitas dimensões. Queria imagens, queria som, queria música, queria o texto claro, queria dança também. Eu queria que os franceses, os portugueses também, mas os franceses - porque estamos, por enquanto, em França a fazer essa peça - descobrissem quem é esse povo português. Quem ele é, de onde vem, o que é que ele viveu chegando em França. Para mim, era importante mostrar essas fotografias que são um tesouro de documentação para essa parte da história. Esses sons eram uma viagem que eu queria fazer, uma viagem em Portugal para nós porque temos essa saudade do país e para os que descobrem a nossa cultura. Uma viagem ali no teatro. Disse que por enquanto o espectáculo está em França. Há o objectivo de o levar a Portugal? Isabel Ribeiro: Ai gostaríamos muito! Sim, claro! Há muitas pessoas que já estão reformadas lá. Há pessoas francesas que moram lá e também fazer descobrir essa parte da história aos portugueses.O espectáculo já andou em digressão. Como surgiu a oportunidade de o apresentarem no Festival Off Avignon e quais foram as dificuldades?Isabel Ribeiro: Nós nunca tínhamos pensado vir cá, mas parece que tudo foi posto para nós virmos cá, sem que nós pedíssemos qualquer coisa. Houve uma pessoa que se interessou pela nossa peça e disse gostaria de nos ter no seu teatro e de nos ajudar em tal e tal aspecto da publicidade. Então, tudo foi posto assim, como estrelas que ficassem todas alinhadas. Agora nós trabalhamos para que esse trabalho todo tenha resultado. Dan Inger dos Santos: Como a gente esteve com a peça em Paris, houve alguns amigos que fizeram também uma aposta sobre esta nossa história, que é a história de cada um, e alguns empresários vieram a ajudar. Há uma fé nesta peça que esperamos levar a Portugal, mas também à Bélgica, Canadá, Luxemburgo, onde a gente pode falar em francês e dar essa história.O espetáculo fala da emigração clandestina portuguesa em massa para França nos anos 60 e 70 para fugir à guerra colonial, à ditadura, mas também fala das esperanças goradas. No espectáculo dizem: “Lá é a liberdade”, “Um dia vamos voltar” mas acabam por não voltar. Este tema é intemporal quando vemos que a emigração forçada continua a ser um drama de tantos povos. Também querem passar essa mensagem? Isabel Ribeiro: Sim, é claro que falámos dessa emigração, das esperanças, das desilusões também. Vemos que a história se repete, não é? O que se passa agora no mundo é exactamente a mesma coisa e muitas populações de outros países vivem a mesma coisa. Chegam também de maneira clandestina ou não e depois eles têm essa vontade de voltar para o país deles também. É uma história universal mesmo. É isso que é importante nesta peça. Há uma frase do Tolstoi que eu encontrei quando estive a começar a escrita da peça e para mim queria dizer tudo. Era: “da tua história tu podes fazer uma coisa universal e para falar do universal tens de falar de ti primeiro”. A frase não é exactamente esta, mas é esse o sentido. É universal esta história, é igual para todos.Ou seja, o íntimo acaba por ser político… Ambos nasceram em França e cresceram com esta dupla cultura franco-portuguesa. Como é que ela vos construiu?Isabel Ribeiro: Está por todo o lado! Não sei, quando somos mais pequenos não nos toca assim muito e queremos ser como os outros, mas crescendo, a personalidade construindo-se, vemos bem que há outra coisa dentro de nós que está a querer mais espaço na nossa vida e que nos dá essa riqueza e é o que nos diferencia também dos outros. Dan Inger dos Santos: Quando se chega a uma certa idade e quando familiares se vão embora, há um um apelo das raízes, não sei, é uma coisa natural. Posso pensar que sou francês, mas não posso esquecer essa parte portuguesa.
7/8/202314 minutes, 17 seconds
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Tiago Rodrigues: Festival de Avignon é o “combate pela liberdade artística”

A 77ª edição do Festival de Avignon arranca esta quarta-feira e decorre até 25 de Julho com uma programação que tem como “fio invisível” a capacidade dos artistas transformarem a vulnerabilidade humana em invenção de outras formas de se viver. A descrição é feita pelo seu director, o português Tiago Rodrigues, para quem Avignon representa o “combate pela liberdade artística”. Tiago Rodrigues é o director artístico do mais icónico festival de teatro da Europa, o Festival de Avignon, cuja 77ª edição arranca esta quarta-feira e decorre até 25 de Julho. O encenador, actor, dramaturgo português é o primeiro artista não francês aos comandos do festival e a sua primeira programação tem a língua inglesa como convidada. No cartaz, há 44 espectáculos franceses e internacionais, 55% são assinados ou co-assinados por mulheres, nomeadamente o que abre o evento na mítica Cour d’Honneur do Palácio dos Papas da encenadora francesa Julie Deliquet, a segunda mulher encenadora a fazê-lo depois de Ariane Mnouchkine. Tiago Rodrigues defende e repete que “é urgente a liberdade artística”, que se deve “oferecer aquilo que está no código genético do Festival de Avignon que é uma grande pluralidade de estéticas” e que cabe a Avignon criar “pontes de diálogo artístico e cultural”.RFI: Desde 1947, a encenadora francesa Julie Deliquet é apenas a segunda mulher a abrir o festival na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas. Porque decidiu fazê-lo? Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon: A primeira escolha foi abrir o festival com o trabalho da Julie Deliquet que é um trabalho absolutamente formidável por duas características fundamentais. Uma é a singularidade do seu trabalho com as actrizes e com os actores. É uma grande directora de actores e de actrizes que trabalha sempre experimentando, mudando a cada noite a ordem das cenas, reinventando, o que dá uma frescura vital à interpretação das actrizes e dos actores absolutamente notável. Depois, a sua capacidade de se alimentar do cinema para fazer teatro. Trata o cinema como se fosse a sua biblioteca de reportório teatral e transforma cinema em teatro, mas num teatro que é esse teatro singular das pessoas, das actrizes e dos actores, da palavra, muito próximo de um teatro de uma grande acessibilidade popular e muito íntimo com o público mesmo num espaço tão grande como a Cour d’Honneur. Foi depois dessa escolha e do projecto “Welfare”, a partir do filme documentário de Frederick Wiseman, que nos demos conta, felizes, que era a segunda encenadora – segunda mulher francesa encenadora - a abrir o festival na Cour d’Honneur desde 1947, sucedendo a Ariane Mnouchkine, apesar de ter havido coreógrafas francesas e outras, Mathilde Monnier, Pina Bausch, Anne Teresa De Keersmaeker, que apresentaram o seu trabalho na Cour d’Honneur, mas no caso do teatro apenas duas mulheres desde 1947, o que nos dá uma medida do trabalho que ainda está por fazer. Mas não a convidámos por ser uma mulher. Ficámos foi muito felizes que a nossa escolha artística coincidisse com uma visão que é também política, com princípios e valores que defendemos.Nesta edição, fala-se, em palco, de feminicídios e violências contra as mulheres com Carolina Bianchi e Mathilde Monnier; de racismo com os Elevator Repair Service e Rebeca Chaillon; de escravatura com Emilie Monnet; de violência sobre os Sem Terra na Amazónia com Milo Rau; de guerra e mundos impossíveis consigo… Qual é a ambição e a linha de força?Eu julgo que nós seguimos os artistas. Esse é um dos combates do Festival de Avignon. É o combate pela criação, pela liberdade artística e seguir as ideias e os desejos e as urgências dos artistas. Portanto, não havia um tema, à partida, que procurássemos. Hoje, olhando para esta programação, há uma espécie de estrutura que emerge, um fio invisível que atravessa toda a programação, que é a capacidade que têm os artistas e as artistas de observar a vulnerabilidade humana, seja a vulnerabilidade colectiva, social, económica ou a vulnerabilidade individual, íntima, emocional, biológica, e transformar essa vulnerabilidade em criação. Olhar para a fragilidade, para a dificuldade, para a complexidade e ver aí um território fértil para a invenção e, muitas vezes, a invenção de uma fantasia, de um imaginário de outras formas de vivermos. Encara o teatro como uma grande utopia popular, um lugar de assembleia, de união e reunião, que deve fazer pensar e agir. No seu cartaz tem espectáculos que são murros na mesa e um apelo à resistência. Que marca quer deixar o Tiago Rodrigues nesta sua primeira edição? O Festival de Avignon de Tiago Rodrigues é a afirmação de que é urgente um teatro de intervenção e contar histórias da desobediência? Eu acho que é urgente a liberdade artística e eu acho que há artistas que têm um compromisso político, social que exprimem através da sua criação artística. Mas também há enormes artistas, muitos deles presentes também nesta programação, que não têm um discurso explícito sobre o seu compromisso artístico, embora o possam ter, mas não fazem aquilo que nós chamaríamos um teatro político. Eu penso no coreógrafo japonês Michikazu Matsune que trabalha com Martine Pisani - grande coreógrafa francesa que está pela primeira vez no Festival de Avignon - sobre a escrita coreográfica das suas primeiras peças, agora que o seu corpo já não pode dançá-las. Por exemplo, este trabalho sobre a passagem do tempo é um trabalho que também tem uma dimensão política, mas é sobretudo poético. Penso, por exemplo, no espectáculo “Paysages Partagés”, um espectáculo com sete espetáculos dentro, um grande passeio de sete horas na natureza, onde estão aliás, porque falamos em português, artistas portugueses. Vítor Roriz e Sofia Dias assinam uma das peças deste projeto de sete peças que não é necessariamente explicitamente político, mas obviamente que ao colocarmos a paisagem e o mundo natural no centro de um espectáculo há um compromisso com a sociedade, com o mundo, ecológico, poético que quer ser proposto ao público. É essa grande diversidade de olhares para o mundo, alguns mais explicitamente políticos, outros mais poéticos e outros ambos poéticos e políticos que nós queremos propor ao público. Nem só de teatro é feito o Festival de Avignon. Há dança e concertos de homenagem a Lou Reed, David Bowie e Neil Young... Há uma vontade de “desierarquizar” as artes de palco?Há uma vontade de oferecer aquilo que está no código genético do Festival de Avignon que é uma grande pluralidade de estéticas e acho que hoje, pensando numa programação para um público que também desejamos muito diverso, temos que ter a riqueza de diversidade em palco. Não podemos esperar ter uma grande diversidade de público - e quando falo de diversidade, falo de diversidade cultural, diversidade social, diversidade de origens étnicas, por exemplo - não podemos ter essa diversidade na plateia completamente se não a tivermos também no palco. A riqueza da diversidade em palco é muito importante e aí entram as estéticas - algumas mais acessíveis, outras mais complexas - entram os temas dos trabalhos, entram os intérpretes, os corpos, a representatividade dos corpos. É muito importante também que quem está na plateia se veja, de alguma forma, em palco e se possa identificar e se possa relacionar, não se sinta a observar o outro o tempo todo, que se possa também observar a si mesma ou a si mesmo. E esse jogo de diversidades na plateia e no palco é um jogo que implica um pensamento sobre a inclusão, sobre a acessibilidade que é muito importante para nós e que toca também a programação artística. E o lado político mais uma vez... A anulação do espectáculo “Os Emigrantes” de Krystian Lupa levou-o a apresentar o seu “Dans la mesure de l’impossible”, que também descreve situações limite na escala da experiência humana. Porquê esta peça?Esta peça porque, em primeiro lugar, era preciso ocupar, à última da hora, um espaço deixado vazio pela anulação de um espectáculo que não conseguimos tornar possível depois de ter sido anulado na sua estreia e porque não existia. E por um motivo, para já, de ser um espectáculo que está a circular presentemente. “Na medida do impossível” em português, “Dans la mesure de l’impossible” foi mesmo agora apresentado na Roménia no Festival de Sibiu. Vai estar no Festival de Edimburgo em Agosto e, entre digressão, havia esta possibilidade de o apresentar em Avignon. Achei que, enquanto director, convidar artistas ou companhias à última da hora para uma substituição é, de alguma forma, expor esse artista, essa companhia, a encontrar o público embora não fosse a primeira escolha. É uma substituição à última da hora. É, como nós diríamos em Portugal, para desenrascar. E se é para desenrascar, prefiro expor-me a mim a ocupar este lugar e correr o risco de ser olhado como uma escolha de última hora.E também porque sempre disse que, uma vez que é para resolver um problema do festival, impedindo que o festival tenha um grande prejuízo financeiro ao não ter nenhum espectáculo nessas datas, eu sempre disse desde o início que o meu trabalho artístico estaria ao serviço do festival de Avignon e nunca ao contrário e, portanto, já desde a primeira edição, graças a um imprevisto infelizmente, tenho a oportunidade de o provar. “Não basta representar o mundo, é preciso mudá-lo”, diz um dos encenadores que convidou, Milo Rau. Dá ideia que o teatro radical de Milo Rau também inspira de certa forma o teatro de Tiago Rodrigues. “Dans la mesure de l’impossible” conta situações brutais e cenas, digamos, impossíveis de ver mas que aconteceram. Um dos trabalhadores humanitários conta: “Há coisas que vemos no nosso trabalho, coisas tão obscenas, tão horríveis, que não deveriam ser mostradas em palco”… Como é que se representa o que não é representável e que impacto espera que isso tenha no espectador?Julgo que a capacidade de evocação, de poesia, que existe no teatro permite mostrar, mas também permite fazer imaginar. Muitas vezes, nos ensaios desta peça “Na medida do Impossível – Dans la mesure de l’impossible” estávamos face, precisamente, ao impossível. Havia histórias que achávamos que não podíamos contar, mas o poder da evocação, o poder de fazer imaginar o público às vezes é mais forte do que a descrição ou mostrar uma cena. Aí entra, por exemplo, mais um português, Gabriel Ferrandini, enorme baterista, músico português, que muitas vezes está lá para nos dar em música aquilo que nós não temos palavras para descrever: muitas vezes o horror, a violência.O festival termina consigo em palco, frente a frente com o público, com o “By Heart”, em que lhe vai ensinar, de cor, um soneto de Shakespeare. A dada altura ouve-se “A resistência são homens e mulheres que aprendem de cor livros proibidos”... Num mundo em que a memória se vai perdendo, que peso tem esta peça na sua primeira edição?É uma peça que é talvez a minha peça mais pessoal. Eu costumo dizer que se alguém me quiser conhecer, melhor do que passar 15 dias comigo, é ver o “By Heart” durante uma hora e meia e fica a conhecer-me. É o meu cartão-de- visita, uma espécie de passaporte artístico, mas também pessoal. E é uma peça que conta a minha história também com a França. Eu criei-a há dez anos, em Lisboa, no Teatro Maria Matos, mas depois apresentei em Paris, no Théâtre de la Bastille. Desde essa altura, comecei a estar muito mais presente em França e, de alguma forma, terá contribuído, terá sido um dos trampolins que fez com que eu emigrasse o ano passado e agora viva em França e trabalhe na direcção do Festival de Avignon. Para mim, era uma possibilidade de um encontro poético, mas palpável, muito real, com o público deste festival para me dar a conhecer não apenas como director, mas também enquanto ser humano e enquanto artista.Este ano, é a língua inglesa a convidada. Mas há apontamentos lusófonos muito fortes, como « A Noiva e o Boa Noite Cinderela” da brasileira Carolina Bianchi, o “Antígona na Amazónia” de Milo Rau, o “Black Lights” de Mathilde Monnier com Isabel Abreu e Carolina Passos Sousa. Também tem duas peças suas. Ou seja, a língua inglesa - dominante, de modo geral, - domina mesmo esta edição ou é só uma forma de contrariar a separação do Brexit e de alargar fronteiras num festival francês?Acho que as duas coisas. Por um lado sim, a escolha da língua inglesa é uma resposta contra o Brexit, dizer que nas artes, na cultura, não aceitamos essa separação e que essas muralhas políticas serão contrariadas com pontes - mesmo que em Avignon não sejamos geniais a construir pontes porque há séculos que temos uma incompleta - mas pontes de diálogo artístico, cultural, que vamos continuar a construir com a língua inglesa, não apenas com o Reino Unido, mas com os países de língua inglesa e acho que há uma grande presença da língua inglesa, muito maior do que nas últimas décadas no Festival de Avignon. São sete espectáculos falados em língua inglesa no festival, mas também muitos artistas franceses que se inspiram de Shakespeare, de Virginia Woolf, de Wiseman, para criar os seus espectáculos e, depois, também a presença de grandes protagonistas da língua inglesa: a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie vai estar connosco para entrevistas públicas, leituras dos seus romances, para participar numa criação radiofónica da France Culture. Há todo um universo de presença da língua inglesa que me parece bem palpável, bem real e muito importante para o público do festival, para afirmarmos este festival cada vez mais como um festival poliglota, um festival do mundo, que convida o mundo, mas que também constrói o mundo. Para construir esse mundo, como é que Avignon pode ser uma utopia de teatro popular quando tudo fica tão caro, quando os bilhetes são tão caros e quando o próprio alojamento em Avignon é caro? Os bilhetes não são caros em Avignon. Os bilhetes têm tarifas altamente democráticas. Por dez euros, um jovem com menos de 26 anos ou uma pessoa dos grupos mais vulneráveis em termos económicos pode aceder a um espectáculo. Isso significa que em Avignon, por exemplo, comparando com esse grande espectáculo que eu também gosto muito que é o futebol, esse grande espectáculo popular, em Avignon nós podemos ver oito a dez espetáculos em vez de um bilhete para ficarmos mal sentados num estádio de futebol. Isso é uma prova da dimensão democrática em termos de tarifário do Festival de Avignon.Uma das coisas que reconhecemos é que efectivamente é difícil o alojamento em Avignon e mesmo a viagem, embora 40% do nosso público seja local. É uma ilusão dizer-se que em Avignon é uma invasão parisiense porque há mais público local do que vindo de Paris em Avignon. Mas, mesmo sabendo que mais de metade do nosso público se desloca para vir a Avignon, isso levou-nos, por exemplo, a antecipar a bilheteira em mais de dois meses. Em vez de abrirmos a bilheteira em Junho, agora abrimos em Abril, o que permitiu a muitos milhares de pessoas alojarem-se mais barato, mais cedo, comprarem bilhetes de comboio ou de avião mais cedo e, portanto, mais baratos também.Há estratégias, embora não possamos controlar o mercado, nós estamos mais do lado do serviço público porque somos uma associação sem fins lucrativos, mas tentamos compensar com estratégias isso que é uma economia com um nível de especulação bastante assustador. Mas também estamos em conversa com a cidade de Avignon, com o poder local, com o Estado e também com os privados para encontrar modos de regulação que permitam que o Festival de Avignon continue a ser acessível ao maior número de pessoas e que, sobretudo, a questão económica não seja um travão. Foi a razão pela qual criámos o projecto, pela primeira vez, que permite que 5.000 jovens venham este Julho a Avignon com viagens, alojamento, organizados em grupo, para ver 19 espectáculos dos 44 da programação, encontrar artistas, participar em ateliers, participar em actividades de moderação cultural. Esses 5.000 jovens vão ser uma espécie de exército pacífico de descoberta deste festival porque virão pela primeira vez e se este projecto não existisse, aí sim, efectivamente, os travões económicos não permitiriam que esses jovens estivessem no festival, descobrissem este festival e descobrissem também aquilo que é vivê-lo pela primeira vez e poder ser transformado como eu fui quando o vivi pela primeira vez.
7/4/202315 minutes
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"O futuro está em África, mas só se vê se abrirmos os olhos"

"Corpo que fala" é um dos mais recentes projectos do artista são-tomense, Eduardo Malé. O artista-pensador preocupa-se com o que o rodeia, crítica as costas voltadas para o mar ou ainda o facto de não se explorar a natureza de São Tomé. "As mãos trabalham, os pés caminham e a procura começa na cabeça", explica. O artista alerta-nos para os problemas que surgem numa população que vive de mãos estendidas - cerca de 95% dos orçamento do Estado do arquipélago vem de fora do país.Eduardo Malé aproveita o espaço exterior do atelier para recolher o lixo que vai parar ao mar, para usar nas suas criações artísticas.Eduardo Malé sublinha que o neocolonialismo existe, tal como o mea culpa da Europa e da América, de quem continua a ter uma espécie de desconfiança. O futuro está em África, mas só se vê se abrirmos os olhos.
6/20/202314 minutes, 28 seconds
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"Fidju di lion" e a estreia a solo do guineense Malan Mané dos Super Mama Djombo

"Fidju di lion" é o álbum de estreia a solo do guineense Malan Mané lançado no final de Abril.Membro de uma das mais conceituadas bandas do país, os Super Mama Djombo, Malan Mané radicou-se há três décadas em França.Este era um projecto musical que ele acalentou ao longo dos anos e que tem merecido críticas entusiastas por parte da imprensa especializada, gravado no ano passado, nos Estúdios Valentim de Carvalho de Lisboa.O cantor esteve nos estúdios da rfi. Acompanhe aqui em vídeo uma curta entrevista a Malan Mané nos estúdios da RFI.
6/13/202317 minutes, 55 seconds
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"Raízes e Ramos": romance de estreia do cabo-verdiano Manuel do Rosário

"Raízes e Ramos" é a saga literária da família Ramos da ilha cabo-verdiana de Santo Antão. Um romance, concluído em 2017, e que o autor, professor reformado radicado no Luxemburgo, esteve a promover em Paris. O "contador de histórias" já tem novo projecto literário na manga e contou à RFI como surgiu o projecto.
6/7/202322 minutes, 35 seconds
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Remna Schwarz em Cannes entre o cinema e a música

Remna Schwarz tem tido uma vida de nómada: nascido no Senegal, viveu entre muitos países africanos e europeus, ou ainda nos Estados Unidos. Filho de uma das maiores referências da música guineense, o já desaparecido José Carlos Schwarz, ele marca presença em Cannes em torno da estreia do filme "Nome" de Sana Na N'Hada. Viajando entre tonalidades musicais muito distintas na sua trajectória, como o rap, o hip hop ou o reggae, neste trabalho de composição para a longa metragem de Sana Na N'Hada ele não deixou de explorar o instrumento tradicional, que é o bombolom.A RFI esteve à conversa com o músico, determinado em aliar dois grandes prazeres seus: a música e o cinema.
5/23/202310 minutes, 26 seconds
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Português Rui Poças em júri de mostra do Festival de Cannes

Rui Poças trabalha com nomes consagrados do cinema, em Portugal, e no estrangeiro há largos anos. A sua fotografia tem-se celebrizado mundo fora e valeu-lhe um lugar no júri da "Semana da crítica", mostra paralela do Festival de cinema de Cannes. O director de fotografia falou com a reportagem da RFI sobre os ingredientes desta edição de 2023 de um dos mais prestigiosos festivais de cinema do mundo onde ele é presença assídua.
5/19/20235 minutes, 59 seconds
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Lura lança novo álbum em Agosto com foco na valorização da mulher

A cantora luso-cabo-verdiana Lura vai lançar neste verão um novo trabalho, tendo revelado à RFI que se vai chamar "Multi Color" e que reflecte a sua evolução como mulher, mãe e artista nos últimos oito anos. O primeiro single chama-se "Si Si" e mostra a sua nova sonoridade. Não abandonando os ritmos tradicionais de Cabo Verde, Lura aproxima-se de novos estilos numa fusão que revela a sua multiculturalidade. Numa passagem por Paris para um concerto no Olympia, Lura falou aos microfones da RFI sobre a valorização da mulher, da auto-estima e da redescoberta da sua identidade."[Neste novo trabalho] Vamos ter a Lura na descoberta de ritmos que possam refrescar aquilo que já conhecem do meu trabalhar, com sonoridades mais actuais, mais frescas, mais electrónicas, mas não é uma mudança radical. Sempre focando a multiculturalidade e a visão de vários aspectos da vida, do quotidiano, da mulher da auto-estima", explicou a artista.Os temas do álbum "Multi Color" partem, segundo Lura, do seu amadurecimento pessoal e das suas experiências enquanto mulher, uma realidade que despertou especialmente depois de ter sido mãe de uma menina."Toda esta valorização e empoderamento feminino acaba por me afectar porque realmente é uma causa importante, sem desprimor para a importância dos homens. Mas cada vez mais sei que tenho de m respeitar a mim própria e respeitar as outras mulheres e, se não formos nós a reconhecer essa importância na nossa vida e todas juntas em sociedade, quem o fará?", indicou Lura.Outros temas como a identidade e a dupla nacionalidade portuguesa e cabo-verdiana também têm espaço neste novo trabalho."Falo muito desta minha dupla nacionalidade, portuguesa e cabo-verdiana, e isto faz de mim uma pessoa de várias cores, não só apenas negra, sou de todas as cores porque somos pessoas de várias cores", declarou a artista.Lura vai voltar a Paris em Outubro para um concerto no Café de la Danse, com o seu novo álbum, que conta com uma parceria com o músico Agir, onde a artista mostra vontade de continuar a participar no movimento da música lusófona que atravessa fronteiras."Sempre fiz parte deste movimento de mistura de culturas. Desde o assumir do meu afro, às vesestes africanas, à cores, ao lembrar que nós, os cabo-verdianos, viemos de africanos e europeus e nos juntámos em ilhas desabitadas e criámos um novo povo, fico muito feliz que África esteja cada vez mais valorizada e estejamos todos a crescer", concluiu.
5/17/202313 minutes, 11 seconds
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Artista português Add Fuel tem nova exposição em Paris

O artista português Diogo Machado, conhecido como "Add Fuel", volta a expor na Galerie Itinerrance, em Paris, de 12 de Maio a 17 de Junho. A mostra individual chama-se "Iter" e é uma viagem a um universo gráfico que reinventa a azulejaria tradicional portuguesa com referências contemporâneas e urbanas. Neste programa, Diogo Machado faz-nos uma visita guiada à exposição "Iter" que inaugura esta sexta-feira na Galerie Itinerrance, em Paris. A conversa acontece num espaço dominado pelos seus azulejos, obras que bebem da tradição mas que se reinventam com novos padrões, formas e formatos, cores e dimensões.A mostra conta com cerca de 70 peças, nomeadamente quatro paredes "rasgadas", painéis de cerâmica, esculturas e pinturas habitadas por um universo gráfico e cromático inesperado e, muitas vezes, em "trompe-l'oeil".Desconstruir, experimentar e questionar são algumas das linhas de força do artista português que agora apresenta a segunda exposição individual na Galerie Itinerrance. Em 2019, a galeria já tinha apresentado a mostra “Deuxième Désintégration” e apoiado a criação de dois murais monumentais no bairro conhecido como "museu ao ar livre" e cujos prédios têm fachadas pintadas por nomes internacionais da arte urbana como Shepard Fairey, Invader, D*Face e os portugueses Vhils e Pantónio. [De notar que a exposição conta mesmo com uma obra assinada por Add Fuel e Shepard Fairey.] Foi também neste bairro, o 13° de Paris, que, em 2013, Add Fuel participou no projecto Tour Paris 13, um prédio transformado num museu de arte urbana efémera por uma centena de artistas.Oiça aqui a conversa. 
5/12/202320 minutes, 40 seconds
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"Árvore da Vida" de Joana Vasconcelos dá esperança de "um Mundo melhor"

Joana Vasconcelos inaugurou esta semana a sua obra monumental "Árvore da Vida", na Capela do Castelo de Vincennes. Trata-se de uma árvore de 13 metros, composta por 140 mil folhas em tecido, que nasceu a partir das emoções do confinamento, como explicou a artista portuguesa em declarações è RFI. De um mito grego em que Daphne é atingida pela seta errada de Cúpido e pede ao pai para que a transforme numa árvore, à representação na Bíblia de uma árvore no Jardim do Eden que tinha como fruto a vida eterna, a Arvore da Vida é um dos símbolos míticos de diferentes civilizações que tem desde a semana passada uma nova declinação na obra monumental de Joana Vasconcelos instalada na Capela do Castelo de Vincennes.Esta "Árvore da Vida" tem 13 metros, numa estrutura metálica que quase toca o teto desta capela centenária e nasceu dos sentimentos vividos pela artista portuguesa e pelos cerca de 200 trabalhadores do seu atelier durante o confinamento em 2020 devido à pandemia de covid-19."Foi algo produzido em plena pandemia, a partir de reciclagem de materiais e tecidos que tinha no ateliê. Foi a ocupação de muita gente durante muitos meses e foi o foco das emoções - até o desespero e ansiedade - e a pergunta 'o que será o futuro?'. Todas essas emoções fazem parte deste projecto. Disse à equipa e a mim própria, que tinha de fazer algo positivo e fantástico para comemorar a saída desse período", explicou a artista.Para João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros português, esta é uma árvore que comprova mais uma vez o domínio da artista portuguesa na criação de obras monumentais que impõem a sua visão da arte moderna, mas também na esperança no futuro."É uma arvore que nos faz meditar, com uma certa dimensão de espiritualidade, que está aqui muito bem nesta magnífica capela", declarou o governante.Já a ministra francesa da Cultura, Rima Abdul Malak, afirmou que esta é uma peça que alia o artesanato - com 140 mil folhas feitas à mão, desde bordados, a lantejoulas, à tecnologia já que na copa da arvore e em centenas de folhas foram instaladas luzes LED."É magnífico, é um trabalho excepcional, que mistura o artesanato e a tecnologia tem uma dimensão espiritual de renascimento. Após dois anos de pandemia e toda a crise sanitária, de isolamento, o confinamento, tanto do lado de Portugal como França, dá-nos uma mensagem de esperança e de vida", disse a ministra francesa.A Arvore da Vida é também para Joana Vasconcelos, mais uma árvore do Parque de Vincennes, um dos principais pontos de encontro dos parisienses no verão, servindo numa altura em que há muitas preocupações com a sustentabilidade, para acreditar num Mundo melhor para todos.
5/2/20238 minutes, 29 seconds
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Rui de Luna dá voz à obra monumental de Joana Vasconcelos na Capela do Castelo de Vincennes

Rui de Luna, cantor lírico português, está em Paris para ser a voz da Arvore da Vida, uma instalação de Joana Vasconcelos que vai ser inaugurada na quinta-feira Capela do Castelo de Vincennes, uma nova obra monumental da artista portuguesa, cantando uma composição original que vai envolver os visitantes  durante a exposição. A Árvore da Vida de Joana Vasconcelos, uma obra monumental instalada na Capela do Castelo de Vincennes com 13 metros de altura e onde foram adicionadas 110.000 folhas de tecido vai ser inaugurada na quinta-feira e aberta ao público no dia 28 de Abril, ficando patente até 03 de Setembro.Nesta abertura, caberá a Rui de Luna interpretar um tema criado por Margarida Gil, que vai acompanhar os visitantes que visitarem a instalação em Vincennes. Um tema que lembra, sobretudo, segundo o cantor lírico disse em entrevista à RFI a importância do amor."Quinta-feira iremos apresentar ao vivo e as pessoas quando visitarem esta escultura e o espaço, terão sempre esta música a envolver. Este tempo pode ser apelidado de lírico-popular, é muito acessível e tem um texto muito bonito que fala, sobretudo, sobre a importância da árvore que simboliza a vida, que vai buscar os seus nutrientes à terra, esta terra que nos alimenta e nos dá os nutrientes fundamentais, que nos dá uma certa iluminação e amor, que é o grande tema desta criação", disse Rui de Luna.Com a sua formação clássica de pianista e cantor lírico, Rui de Luna não tem hesitado nos últimos anos a cantar outros géneros musicais, já que "não quer ficar preso"."Ficamos muito presos e vão-me convidando para este eventos, neste é uma composição original para a minha voz, gosto destas incursões. Estreei em Washington, no ano passado, um Concerto Luso que é em torno dos grandes poetas portuguesas ligados à música ligeira", detalhou o cantor.Para os próximos meses, Rui de Luna voltar a França de forma a conhecer melhor o público gaulês.
4/26/20238 minutes, 19 seconds
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"Uma das coisas bonitas do teatro é que se faz com o público"

A peça de Jean Cocteau "Os Pais Terríveis" está em cena no teatro Hebertot, em Paris, até 30 de Abril. "É engraçado porque há certas coisas que suscitam mais o riso em certas gerações. É uma das coisas bonitas do teatro é que se faz com o público. Há uma energia que nos chega e que devolvemos, num ciclo de energias", conta a actriz Maria de Medeiros. "Os Pais Terríveis" retoma todos os códigos do vaudeville para produzir situações, ritmos e diálogos que pulsam uma energia cómica. "O que alimenta esta máquina infernal é a composição de todos os elementos que fundam a tragédia. Cocteau pinta um retrato terrível das devastações produzidas pelo sentimento universal do amor", escreve o encenador Christophe Perton.A peça traz à superfície tumultos amorosos de uma família. Para além das aparências, o encenador Christophe Perton lembra que o combustível desta máquina é constituído por todos os elementos que fundaram a tragédia. “Sem concessão, sem compromisso, Jean Cocteau disseca os corpos atrofiados pela doença que é o amor", descreve o encenador. Christophe Perton adapta e dirige o diabólico vaudeville de Jean Cocteau com Charles Berling, Muriel Mayette-Holtz e Maria de Medeiros."É uma peça muito intensa que está sempre a oscilar entre momentos cómicos e momentos dramáticos com grande investimento emocional e corporal. Há uma vivacidade no texto que procuramos realçar. É uma peça divertida, intensa", descreve-nos a actriz franco-portuguesa Maria de Medeiros, que interpreta a personagem Léonie. A peça foi apresentada pela primeira vez em 1938 e foi proibida após nove apresentações. "A peça tem inúmeros aspectos e quando estreou, em 1938, foi considerada escandalosa, como sendo um incentivo ao incesto. Trata-se na verdade de uma crítica da família, em torno de uma personagem de uma mãe que ama, de forma desmesurada, o filho. Um amor tão extremo que leva à tragédia. São temas que são de actualidade", explica a actriz.Em cena, os cinco actores oferecem-nos uma confluência de arte dramática e comédia. Cocteau consegue expor o contraditório do bom e mau em simultâneo. A personagem da tia, Léonie, fascinou Maria de Medeiros, que durante duas horas veste a pele de uma personagem que "manipula a acção, que tenta racionalizar e exprimir o pensamento do próprio Cocteau. Ela é uma especia de corifeu, se nos referirmos à tragédia grega, que tenta organizar as informações e a vida da família. Estamos sempre entre uma dualidade de ordem e desordem, de racionalizar e inconsciente".Nesta peça, Jean Cocteau mostra que "a família é um espaço tremendamente teatral. É dentro do núcleo familiar que fazemos os maiores números, somos todos actores. É muito divertido porque está tudo na família, todas as contradições da sociedade já se encontram aí", explica Maria de Medeiros."É engraçado porque há reacções do público mais jovem e mais velho. Nos momentos em que riem, por exemplo, há certas coisas que suscitam o riso em certas gerações mais do que outras. Já estamos em cena há dois meses. É uma das coisas bonitas do teatro é que se faz com o público. Há uma energia que nos chega e que devolvemos num ciclo de energias", conta.
4/19/202311 minutes, 1 second
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"Lobo e Cão": Juventude queer dos Açores nas salas francesas

“Lobo e Cão", o mais recente filme da realizadora portuguesa Cláudia Varejão, chegou esta quarta-feira, 12 de Abril, às salas francesas. A primeira ficção da cineasta conta histórias de adolescentes queers, através de actores não profissionais, inspiradas na vida dos jovens da ilha de São Miguel, nos Açores. Cláudia Varejão filma uma juventude açoriana entre as tradições familiares e a comunidade queer. "Lobo e Cão" foi rodado na ilha de São Miguel e retrata as tradições, o conservadorismo, a forte presença da religião e uma natureza deslumbrante."Fazer um filme são muitas emoções juntas", afirma a realizadora. A curiosidade e o desejo de protecção foram os sentimentos de ponto de partida do projecto "Lobo e Cão". "Foi uma explosão de sentimentos, de emoções. Nos primeiros dias, semanas em que estive na ilha de São Miguel, onde o filme se passa e é rodado, senti muita curiosidade pela vida, sobretudo, pelos mais jovens neste contexto insular", descreve-nos Cláudia Varejão."É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós", escrevia José Saramago. Cláudia Varejão põe os sonhos à prova; "a ideia de que sendo pobre se cresce com passos atrás de alguém que nasce num contexto burguês, de como isso pode definir os sonhos ou a trajectória de vida", condicionando a possibilidade de "atravessar o mar, a linha do horizonte". "A natureza impõe limites, mas também aponta o olhar para uma liberdade sem fim. A linha do horizonte constrange e, ao mesmo tempo, convoca-nos a atravessá-la. Aquilo que este mar, sem fim, nos mostra é que não há fim para a vida, não há fim para desejarmos ser quem queremos ser, não há fim para a viagem", descreve.O filme durou cinco anos, foi escrito, pensado e sentido com a população da ilha de São Miguel. Durante a pandemia, a realizadora recebeu centenas de candidaturas para o casting do filme. O início do projecto foi vivido com os jovens, "à medida que me fui sentando com os jovens e os fui ouvindo, percebi que estava diante de uma população com muitos sofrimentos. Ser adolescente é isto, mas ser adolescente, queer, com identidade e expressão de género e de orientações sexuais que saem fora da norma, do centro social traz muito sofrimento, mais ainda num contexto insular porque todos se conhecem", conta Cláudia Varejão.
4/12/202330 minutes, 31 seconds
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Mostra de Arte e Cultura da Guiné-Bissau decorre durante o mês de Maio

No próximo mês de Maio, a Guiné-Bissau abre as portas à "Moransa di Kultura" - Mostra de Arte e Cultura da Guiné-Bissau. O evento que arranca a 3 de Maio e tem a coordenação de Miguel de Barros e a curadoria de Nú Barreto, Zaida Pereira e António Spencer Embaló. Conferências, lançamento de livros, palestras, exposições de fotografias, filmes, actuações musicais, etc, uma panóplia de acontecimentos coordenados por Miguel de Barros e com a curadoria de Nú Barreto, Zaida Pereira e António Spencer Embaló.  A mostra pretende valorizar e debater a diversidade da produção cultural guineense. A literatura do "MoAC Biss" tem a linguista Zaida Pereira como curadora, o sector das artes visuais, cénicas e performativas ficou a cargo do artista plástico Nu Barreto e as conferências têm a curadoria do sociólogo António Spencer Embaló. O que é a cultura, para que serve e para quem serve é o mote da primeira conferência que está marcada para o dia 05 de Maio, nas instalações da Tiniguena. Segue-se a Cultura como valor acrescentado prevista para o dia 12 do próximo mês na Casa dos Direitos Humanos e fecha-se o ciclo com a internacionalização das “Artes e da Kultura da Guiné-Bissau”, que deve acontecer a 19 de Maio, nas instalações da Tiniguena. O evento que arranca a 3 de Maio, pelas 9h00 locais, na Casa dos Direitos Humanos, com duas conferências sobre os regimes "possíveis" e os regimes “impossíveis” da patrimonialização da violência na Guiné-Bissau. A "Moransa di Kultura" - Mostra de Arte e Cultura da Guiné-Bissau tem a coordenação de Miguel de Barros e a curadoria de Nú Barreto, Zaida Pereira e António Spencer Embaló.
4/4/202311 minutes, 50 seconds
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Joana Gama apresentou 'O Livro dos Sons' de Hans Otte em Paris

A pianista Joana Gama apresentou no domingo, 26 de Março, “O livro dos sons” na sala Pessoa da Casa de Portugal - na Cidade Universitária. Trata-se da obra contemplativa do compositor alemão Hans Otte."Quando ouvi pela primeira vez esta peça fiquei completamente maravilhada. Nem sei descrever por palavras o que é que senti... senti uma ligação enorme à peça", contou Joana Gama. "Das Buch der Klänge", "O Livro dos Sons",  é uma peça para piano composta em 12 partes. Uma peça pautada pela repetição, pela polifonia, num convite à introspecção e ao minimalismo. "Quando ouvi pela primeira vez esta peça fiquei completamente maravilhada. Nem sei descrever por palavras o que é que senti... senti uma ligação enorme à peça. Fiquei fascinada e fui logo procurar quem era o compositor e que peça era aquela", explicou a pianista. A ideia de fazer um festival em Portugal sobre a música, as instalações sonoras, os textos e desenhos de Hans Otte surgiu em 2010. "Houve uma primeira tentativa em 2013, mas não conseguimos fundos suficientes. Houve uma segunda tentativa em 2020, mas houve a pandemia. O festival só aconteceu entre 2021 e 2022", lembrou Joana Gama. Hans Otte : Sound of Sounds foi um festival dedicado à obra do artista e compositor alemão Hans Otte (1926 - 2007) com curadoria de Ingo Ahmels e da pianista Joana Gama. O festival apresentou exposições, concertos, conferências e a estreia mundial da peça de teatro musical J-CHOES, J’ai faim, dedicada aos compositores John Cage, Hans Otte e Erik Satie, que contou com a participação da pianista Margaret Leng Tan. Joana Gama continua a levar a palco a obra do compositor Hans Otte. "Há um grande gosto em dar a conhecer a sua música. Há sempre um lado especial de fazermos com que muita gente ouça algo pela primeira vez", descreveu. Hans Otte foi também editor de programas de rádio. Era conhecido como sendo um "criativo discreto” por ter dedicado mais tempo à divulgação da música dos outros do que às suas próprias obras. "As pessoas não são apenas o que fazem, são pessoas acima de tudo. Quanto mais vou lendo ou falando com pessoas que conheceram Hans Otte mais vou percebendo que ele era boa pessoa, tinha um bom coração, era preocupado e com humor - fico com pena de não o ter conhecido e com mais vontade de veicular a sua obra", explicou. O "Livro dos Sons" de Hans Otte tem sido descrita como uma das criações mais notáveis ​​da música contemporânea para piano. Uma obra contemplativa que "deixa os sons serem sons", como disse John Cage. Joana Gama tem-se desdobrado em projectos a solo ou em colaborações, na música, teatro ou cinema. "Tenho um espectáculo em itinerância que já ultrapassou as 150 apresentações chamado 'As Árvores Não Têm Pernas Para Andar'. É um espectáculo que faço para crianças a partir dos três anos com um pequeno piano, um toy piano. Uso a música e a arte para falar da natureza às crianças. O público infantil é muito engraçado porque para muitos este é o primeiro espectáculo que vêem", concluiu.
3/30/202321 minutes, 13 seconds
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Israel Campos: “O céu de Angola está numa cor difícil”

No passado mês de Fevereiro, Israel Campos estreou-se na escrita criativa e publicou o primeiro romance: "E o Céu Mudou de Cor". Um livro onde o autor explora as relações de afectividade entre primos, tios e amigos expostos aos conflitos geracionais, num país que continua à procura de respostas para os problemas e desigualdades sociais. Uma narrativa com uma força imagética, onde as mensagens chegam através de cartas de protesto, de amor, ou pelo voo dos pássaros. Uma aventura partilhada entre amigos que vivem encurralados num bairro sem esperança e que sonham chegar à “Cidade Baixa” que não está ao alcance de todos e onde reina a abundância.Uma homenagem aos jovens heróis de Angola que resistem aos desafios de um país que, vinte anos depois de ter alcançado a paz, continua a ter cidadãos a comerem no lixo. Israel Campos nasceu em Luanda no ano 2000. Aos doze anos, começou a carreira como locutor de programas infantis na Rádio Nacional de Angola. Formou-se em jornalismo na Universidades da Cidade de Londres, passou pelo jornal o País, pelo portal anticorrupção “Maka Angola” e hoje trabalha como freelancer no serviço em português da Voz da América e para o serviço mundial da BBC. Em 2021, foi eleito uma das 100 personalidades negras mais influentes da lusofonia.     RFI: Porque é que decidiu começar o livro com uma questão de saúde pública, como é o caso do lixo? Israel Campos: O que tentei fazer foi chamar à atenção para estas questões, que por serem tão constantes, tão frequentes, já não nos causam qualquer tipo de surpresa. São-nos indiferentes. Era por aí que eu gostava de começar. A questão da educação, a oposição entre o bairro, que não tem nada, e a “Cidade Baixa” que vive na abundância são também denunciadas pelo narrador, um adolescente.  Este romance pretende apontar o dedo à realidade angolana ou trata-se apenas de uma coincidência? Seria irónico eu sugerir que se trata apenas de uma ficção. É claro que este romance vive muito da realidade angolana, sobretudo, da realidade luandense que melhor conheço.  Às vezes eu fico confuso entre a ficção e a realidade quando eu trato de Angola. Mas, claro, que há uma intenção evidente. No entanto, eu não gosto muito de pensar que seja um livro puramente ideológico, uma ferramenta contra o regime. É um livro que reflecte algumas das várias vivências da nossa realidade [angolana]. Nesta obra explora as relações familiares recompostas.  Dois primos, a personagem principal e Mateus que vivem com a tia Antónia. Existe uma certa confrontação, nomeadamente entre Mateus e a tia Antónia. O que é que pretendeu destacar com estas personagens? Há uma intenção de explorar este tipo de relações que na nossa realidade são bastante comuns. Muitos são os sobrinhos que crescem em casa dos tios, por diversas questões: as deslocações na Guerra Civil; há sobrinhos que vão para casa dos tios mesmo tendo pais vivos porque os pais têm menos condições de vida. Eu quis captar estas relações que são muito importantes. A figura do tio, da tia, em Angola, é muito importante no crescimento da criança, ou dos jovens. Depois, há um evidente conflito de geração e vontades entre a tia António e o Mateus.  Por terem tidos vivências diferentes, olham para o país também de forma diferente, apesar de existirem alguns pontos de convergência. E o Mateus é, como muitos outros jovens que eu conheço desta nova Angola, um jovem inconformado, tentando buscar caminhos para compreender e fazer alguma coisa pelo seu país. Encurralados num bairro sem escola, sem oportunidades o narrador e amigo Marley aventuram-se num universo de mensagens que chegam por cartas e através de pássaros. É uma ode à cultura Umbundu? Também! Claro que nesse capítulo aparece um interesse de se explorar as várias relações que temos com as línguas nacionais. Nesse caso é o umbundo. Há essa discussão das línguas nacionais serem interpretadas por muitas vozes da nova geração como a língua dos mais velhos. Eu e as pessoas da minha geração não falamos porque nunca nos foi ensinado. Achei, por isso, que havia uma oportunidade de explorar e de ver o que dava. A associação que faço ao universo dos pássaros pareceu-me interessante. Eu tentei tratá-los como uma coisa real do dia-a-dia. Há voos de pássaros que nos encantam e que podem, eventualmente, trazer mensagens. Às vezes não trazem. É simplesmente um pássaro a voar. Mas às vezes tenho a sensação que os pássaros nos querem dizer qualquer coisa. Marley e o protagonista conseguem, de alguma maneira, fazer essa leitura que eu acho bonita. Há ainda uma carta que mais tarde se percebe que é de amor. Quis também tratar a questão da homossexualidade? Claro que pretendo tocar nesta questão que às vezes é um assunto que é ignorado, visto como tabu. Eu entendo que a literatura possa ser utilizada para disseminar ódio ou amor, para vários fins. Mas eu acho que a literatura tem o poder de humanizar a visão que temos sobre o outro. Parte do processo de humanização é reconhecer que existe um outro. E essa carta acaba por abrir esta conversa que julgo ser importante e que devemos ter. Na obra, há ainda a referência aos temas de impacto na sociedade angolana, como o caso que ficou conhecido pelos 15+2, encarnado, de certa forma por Mateus que, depois de ter fugido da “Cidade Baixa”, encontra o no Sr. Zé um aliado. Porque é que o Sr. Zé é branco? Porque existem angolanos brancos (risos). Se olharmos hoje para o Governo angolano, para a estrutura, existem governantes angolanos que são brancos mestiços. Quis passar a ideia de que há essa diversidade em Angola. E ele [o Sr. Zé] acaba por ser essa figura. O que o Sr. Zé traz, na verdade, é um discurso que eu estou acostumado a ouvir há muito tempo: pessoas que acham que é mais fácil mudar o país de dentro para fora. Porém, o que acontece, em muitos casos, é que essas pessoas mais ligadas à sociedade civil, ao mundo académico quando entram para o Governo e ocupam esses postos, mudam de forma muito radical e não concretizam essas promessas. A verdade é que o Sr. Zé é anti-sistema, mas acaba por beneficiar do sistema….   Exactamente, exactamente.  E é estranho! Convivemos com essa retórica. Foi isso que quis fazer, explorar essa ideia de pessoas entrarem para essas instituições com uma missão, mas acabarem por ser absorvidas por todos estes benefícios. Este livro fala ainda de jovens que se sacrificam por uma causa. Quis fazer uma homenagem aos jovens heróis de Angola?   Sim, eu penso ser importante manter a memória viva porque nós precisamos de compreender de onde viemos. A referência clara aos 15+2, surge exactamente disso. Eu acho que eles foram um grupo muito importante de influência e que abriram, de forma indiscutível, os olhos de muitos jovens- como eu-para as questões importantes do país e para a necessidade de não nos conformamos com o status-quo. Há ainda o médico Sílvio Dala que morreu durante a pandemia de Covid-19 por alegada brutalidade policial. Estas referências são importantes porque nos relembram situações que não se podem voltar a repetir.   Os efeitos da colonização e o que restou dela, a colonização moderna são denunciados no seu livro.  No prefácio, Alexandra Simeão diz que: “E o céu mudou de cor é uma fotografia dolorosa da realidade angolana 20 anos depois da paz ter chegado, Angola continua a ter cidadãos a comerem no lixo e o céu continua a não dar respostas”. Como é que está o céu em 2023, Israel? O céu de Angola está numa cor difícil. Olho com bastante preocupação para a realidade que nós vivemos hoje e ainda com maior preocupação para o descaso das autoridades. Sinto que fazendo parte da “geração da paz “tenho essa responsabilidade. Somos a esperança viva. É claro que não podia deixar de dizer que, apesar deste cenário que é realmente dramático, fico muito satisfeito por saber que muitos jovens entendem que a realidade em Angola não é boa e que precisamos de fazer esforços conjuntos para mudarmos. Isso é que me sustenta diariamente. É acordar e ver que jovens, nas mais diversas províncias do país, têm feito esforços nos sectores que podem, nas formas que podem, com os recursos que têm para minimizar o sofrimento de quem nos rodeia.    
3/21/202313 minutes, 1 second
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"Nayola", o filme de animação que retrata Angola pela voz das mulheres

O filme “Nayola”, a primeira longa-metragem de animação de José Miguel Ribeiro, retrata o impacto da guerra civil angolana na vida de três mulheres: Lelena (a avó), Nayola (a filha) e Yara (a neta). Inspirada na peça “A Caixa Preta”, de José Eduardo Agualusa e Mia Couto, com argumento de Virgílio Almeida, o filme mostra que "as guerras nunca terminam" e que as lutas por um mundo melhor se podem perder se as vozes se calarem. Em 1995, Nayola deixa a sua bebé Yara com a avó, Lelena, para procurar o marido desaparecido em combate, durante a guerra civil angolana. Em 2011, Yara é uma "rapper" e activista dos direitos humanos perseguida pela polícia. Dois percursos paralelos que crescem em duas linhas temporais que não se conseguem encontrar. Duas vidas que reflectem um país dilacerado pelas guerras do passado que contaminam o presente. "Ninguém volta da guerra", ouve-se no filme "Nayola", uma história que também é de esperança por um futuro melhor enquanto houver vozes comprometidas com um sonho comum. O filme estreou em França simbolicamente a 8 de Março, Dia Internacional dos Direitos da Mulher, vai estrear em Angola a 31 de Março e chega aos cinemas portugueses a 13 de Abril. Depois do circuito dos festivais e de ter conquistado vários prémios, o realizador José Miguel Ribeiro diz que o maior prémio é que os angolanos sintam o filme como deles e começa por descrever como é que a luta pela construção de uma família também reflecte a luta pela construção de um país. RFI: Como é que resume a história do filme “Nayola”? José Miguel Ribeiro, Realizador de “Nayola”: Nayola conta a história de três gerações de mulheres angolanas que resistem e sonham com um país melhor e lutam por um país melhor, bem melhor, e tentam no meio dessa luta conciliar aquilo que é a construção de uma família com a construção de um país. É uma história que se baseia no texto teatral "A Caixa Preta" do angolano José Eduardo Agualusa e do moçambicano Mia Couto. O que é que o levou a querer adaptar esta obra? Quando descobri a obra que me foi mostrada pelo Jorge António, um amigo realizador que vive em Angola há mais de trinta anos, foi ele que mostrou a peça de teatro antes de ela ser publicada. O que me pareceu interessante nessa peça de teatro era essa dimensão humana destas três mulheres e a forma como tocadas pela guerra, uma guerra imensa que foi a guerra da libertação - são 13 anos mais 27 anos de guerra civil - foi um percurso enorme de sofrimento do povo angolano. O que eu gostei na peça de teatro é essa dimensão humana e quando digo humana é porque todas estas três personagens têm as suas qualidades, mas também têm os seus segredos, os seus lados menos positivos e todas elas lutam e mostram-se de uma forma bastante humana. Essa dimensão humana das personagens foi uma das coisas que mais gostei, a forma como eles as escreveram, como nós tentámos depois também trazê-la de uma forma, se calhar, mais simbólica. Acrescentámos a viagem da Nayola ao passado, à procura de marido, que não existia na peça de teatro; introduzimos uma Medusa que é uma 'rapper' que também não existia como 'rapper' na história do Mia Couto e do Agualusa. Houve um trabalho de contaminação também da história de Angola e daquilo que nós fomos acompanhando: o caso do Luaty Beirão e dos 15 activistas que foram presos. Enfim, o filme demorou nove anos e durante esses nove anos o mundo não esteve parado, esteve sempre a mudar e casos como a morte de George Floyd foram casos que me influenciaram nas tomadas de decisões artísticas também. Falou da dimensão humana, mas há também uma dimensão militante muito forte de mulheres. A história anda à volta de três mulheres. Todas elas lutam à sua maneira: uma vai para a guerra; a outra faz rap e é procurada pela polícia porque, como diz um dos personagens "o rap é guerrilha" e o poder estava "com medo das músicas" dela. No quarto da Yara temos um cartaz a dizer "Feminists" e estreou o filme em França a 8 de Março, Dia Internacional dos Direitos da Mulher. Quis mostrar esta força das mulheres? Era necessário? Eu acho que sim. Continua a ser necessário. Infelizmente continuamos num mundo muito machista, onde o espaço das mulheres tem que ser conquistado com luta e com força e são, de facto, as mulheres que têm feito essa luta. Eu acho que é nossa obrigação - também homens - juntar-nos a essa luta e antecipar esse equilíbrio na sociedade porque já não se compreende como é que temos uma sociedade continuamente machista que impõe às mulheres um desgaste todos os dias de energia para conseguirem coisas que os homens já têm há tanto tempo. A música está sempre no filme. Até na guerra civil um dos soldados tem uma guitarra e na Luanda de 2011 do filme a Yara é uma "rapper" perseguida como já foi Luaty Beirão e tantos outros. No filme, conta com as vozes de Bonga e da "rapper" Medusa que dá voz a Yara. A cantiga como arma também guiou o filme? Sim, aliás, a música com que nós fechamos o filme é a música do Bonga 'Mona Ki Ngi Xiça', que foi uma música do primeiro álbum que ele já gravou na Holanda - quando teve de fugir do regime fascista português e refugiar-se na Holanda - e essa música por si só, e também todas as primeiras músicas do Bonga, eram essa manifestação de resistência e de luta. Primeiro, ainda contra o ocupante, o colonisador Portugal e, depois, a Yara, neste momento, é a luta contra a injustiça social que ela identifica no país e pelas quais ela se defende. A luta continua. A democracia e a conquista dos direitos e da justiça num país não é nada que se possa dizer que está conquistado e está garantido. É uma luta permanente, constante e talvez para os europeus é mais visível a de Angola, mas na Europa há muitas lutas também ainda a fazer e há muitas conquistas que se podem perder. Porque é que quis focar-se em Angola? Que memórias de África é que o levaram a querer fazer este filme sobre Angola? Eu cresci com álbuns do meu pai na Guiné-Bissau que foi militar das forças portuguesas na altura da guerra colonial - como muitos portugueses que não tiveram alternativa, era imposta essa permanência e essa luta contra as colónias. Eu cresci a ver álbuns do meu pai em cima de árvores, vestido de militar, com macacos ao lado. Imagens que eu, na minha inocência de criança, achava muito exóticas e muito distantes. Depois fui crescendo, felizmente tivemos o 25 de Abril em Portugal, a chegada da democracia, a independência das colónias, mas infelizmente fui acompanhando a guerra civil, especialmente em Angola e Moçambique, mas em Angola com mais violência e que durou ainda mais tempo. Angola não é propriamente um tema distante de mim, acho que de nenhum português. Mas conhecia muito pouco Angola, confesso, e quando comecei este trabalho tive que reconhecer a minha ignorância e fazer uma longa pesquisa de mais de cinco anos a ler tudo o que apanhava, a ler também altos autores para além do Agualusa, Pepetela, fazer a minha investigação pessoal para depois, já num processo criativo, poder fechar os livros, escutar a minha memória dessa experiência que foi longa e grande e onde aprendi muito. Aprendi essencialmente a sair da minha posição de ocidental porque essa é talvez a grande aprendizagem deste processo criativo de fazer este filme. É que em Portugal e na Europa continuamos muito limitados na capacidade de nos meter no lugar dos africanos. E quando lá estamos e quando começamos a aproximar-nos, aí é que vemos a distância entre aquilo que é o olhar de África sobre a Europa e o olhar da Europa sobre a África. É uma distância enorme. Vamos então ao processo criativo. As máscaras africanas são um padrão central no filme, mas também as cores quentes, os rituais, as pontes entre vivos e mortos. Como é que construiu o universo gráfico de Nayola? As máscaras influenciam a arte na Europa há muito tempo, desde o Picasso, com o Cubismo que teve influência das máscaras; o Modigliani que também utilizou muito as máscaras para um momento da criação da sua obra. Eu estudei essa arte contemporânea e não podia ficar indiferente à capacidade de síntese e à beleza e força gráfica das máscaras. Para mim, as máscaras africanas já me influenciavam nos meus filmes anteriores, antes de eu fazer um filme africano. Quando eu decidi avançar para este projeto, era óbvio que as máscaras tinham que ser centrais na construção dos personagens até porque elas também são referidas na própria peça de teatro do Mia e do Agualusa. Há um momento em que a Yara diz: "Toda a gente devia usar uma máscara que mostrasse aquilo que nós realmente somos". Com base nessa evidência, nessa presença das máscaras na peça, eu fiz uma pesquisa ainda mais profunda e tentei encontrar uma coerência para a utilização das máscaras e, até, do design das personagens que justificasse também porque é que usamos máscaras. Usamos as máscaras para nos proteger ou para nos mostrarmos? É um questionamento que eu faço no filme e desenvolvo, depois, graficamente as personagens. Parece que o desenho e as cores acompanham tempos paralelos. O passado, de Nayola, à procura do marido na guerra e no mato, e o presente, de Yara, em Luanda. Houve essa vontade de marcar graficamente diferentes universos e tempos? Sim, porque, na verdade, o momento presente é o pós-guerra, o passado é a guerra. Se há alguma coisa que a guerra tem é a intensidade. Tudo é intenso. Na guerra não há meio termo. O que se sente, o que se vive, o que se sofre, é tudo intenso e eu tentei graficamente mostrar essa intensidade com a utilização de uma paleta gráfica muito forte, com cores fortes como os amarelos, os laranjas, os vermelhos, os verdes puros, quase puros. Uma textura, também, sem ser muito trabalhada, crua, e um movimento a nível da animação. Usámos o 2D no passado e animação 3D no presente. Uma animação 2D também muito expressiva e muito intensa e, portanto, eu faço esse contraste entre um passado intenso e plasticamente marcante para um presente mais próximo do fotográfico, uma visão fotográfica com uma dimensão também mais real, se quisermos. É desse contraste que se cria a relação entre um país em paz e o país em guerra e como a guerra continua a tocar a paz do país, mesmo depois de já ter acabado. É esse zigue-zague porque o filme é construído com saltos temporais do presente para o passado exactamente para reforçar essa ideia de que o passado continua a influenciar-nos mesmo que já esteja um bocadinho distante. Uma das frases mais pungentes do filme é "Ninguém volta da guerra". Há também outra frase: "Lutam melhor os que têm belos sonhos. As armas também matam sonhos". Que mensagem é que quis deixar com este filme para a Angola de 2023? Eu acho que é para Angola, mas é para o mundo todo também. Eu acho que as lutas, as guerras nunca terminam. Aliás, eu estava agora a ver uma entrevista de uma viagem que fizemos a Angola em que estivemos a mostrar o filme. Estivemos  em Luanda, Benguela e Lubango e há uma das pessoas que nós entrevistámos que nos disse de uma forma que eu acho muito directa e muito visível que a guerra continua.  A guerra, claro que não tem se calhar essa dimensão de guerra no sentido de uma violência mais bárbara, mas é uma guerra de procura de um país melhor, de um país sonhado, das pessoas se reverem naquilo que é o seu país, de sentirem que estão a construir qualquer coisa que é um sonho comum e isso, para mim, é fundamental não só em Angola como no mundo todo. A guerra, essas batalhas pela justiça, pela paz, pela distribuição equitativa da riqueza, pela tolerância, são guerras todos os dias. A Yara representa isso, representa a nova geração de jovens comprometidos com um mundo melhor que não se consegue se ficarmos todos em casa. Esse mundo só se consegue quando as pessoas saem e mostram aquilo que querem e não se resignam àquilo que é a condição que lhes querem impor. Eu acho que essa luta, no dia em que nós nos calarmos, ela é perdida, portanto, é importante as pessoas ouvirem-se e fazerem-se ouvir. E o José Miguel Ribeiro não pretende calar-se... Teve antestreia em Luanda, em Fevereiro, e chega ao circuito comercial angolano no final de Março. Quando exactamente e como é que tem sido a recepção em Angola? Na semana que estivemos, e que foi uma semana muito intensa, estivemos com os produtores belgas, também nos acompanharam produtores franceses, com o Jorge António que vive lá e o Henrique, a Medusa também andou connosco. A sensação que tive foi que as pessoas primeiro se emocionaram muito e também se riram muito porque a cena do tio e do sobrinho, que afinal descobrem que estão a lutar em lados contrários, é uma cena hilariante no sentido em que as guerras muitas vezes sabemos como as começamos, mas depois já não sabemos bem porque é que elas existem, porque as pessoas às tantas estão todas a lutar do mesmo lado mas lutam umas contra as outras. O que me tocou mais também foi sentir que as pessoas sentiram o filme como um filme angolano. Um filme que é deles, que é a realidade de Angola, são as lutas deles e é a Angola do passado mas também uma Angola do presente e do futuro. E aí foi o que eu tentei também fazer porque a peça de teatro foi escrita pelo Mia Couto e pelo Agualusa algures em 2011 e esta dimensão mais actual trazida pela Medusa foi também uma intenção de não fazer um filme só a falar do passado mas que fale também do presente e do futuro. Os angolanos reveem-se neste filme, naquilo que são as suas lutas actuais também por um país mais justo, mais equilibrado, mais democrático. Enfim, o país é uma construção, nunca acaba, mas eu fiquei assim muito tocado de os ver falar do filme como se estivessem a falar de um filme angolano. Para mim, é o maior prémio que posso ganhar depois de fazer este filme, é sentir os angolanos a sentirem o filme como um filme deles, que é isso que eu tentei fazer. Quando é que o filme se vai estrear exactamente em Angola? Em Angola é 31 de Março. Em Portugal, sai a 13 de Abril. Em França, vai continuar, estreou na semana passada. Na Holanda, já há uma data de estreia também a 13 de Abril. Na Bélgica, ainda não está anunciada e irá sair também no Brasil. Estes são os países que eu posso confirmar hoje que vão fazer o filme sair em sala. Precisamente, o filme é uma co-produção com a Bélgica, França, Holanda e Portugal. Como é que foi viabilizado financeiramente e quanto é que custou? O filme teve um custo total de três milhões e duzentos mil euros, sabendo que nós em Portugal conseguimos arranjar 46% mais ou menos deste orçamento. Portanto, era preciso arranjar o resto. Um filme de animação com este valor nem sequer é um filme muito caro. Os filmes de longas-metragens rondam os dez milhões de euros na Europa, um preço médio, portanto, nós nem nos ousámos a fazer um filme muito europeu nesse sentido do preço. Agora, fomos criativos, trabalhámos com equipas, com pessoas muito talentosas em todos estes países. A vantagem da co-produção é que é um trabalho colaborativo, sempre, fazer um filme. Se tivermos coprodutores que nos entendem, que estão em sintonia connosco, como foi o caso, a JPL, a S.O.I.L e a il Luster são três produtoras que desenvolvem muito o seu trabalho com uma base muito grande de filmes de autor. Todos nós estávamos em sintonia que é uma obra artística aquilo que nós queremos fazer, não tínhamos ambições de fazer blockbusters e estivemos sempre muito em sintonia. Depois foi preciso distribuir o trabalho, dividir o filme, tentámos manter uma escala pequena na produção em cada país e em vez de concentrarmos em cada país uma parte da execução do filme como se costuma fazer: por exemplo, faz-se a animação num país, depois a intercalação noutro, depois a pintura noutro. Nós tentámos manter em todos os países estas fases, dividindo o filme, uma vez que o filme é um quase road movie, é um filme de percurso, com estilos gráficos também diferentes em vários momentos - temos pintura animada, desenho animado, 3D - fizemos essa divisão mais do princípio ao fim para cada país do que especializar cada país só numa fase da produção. Isso fez com que as equipas trabalhassem de uma forma mais próxima do filme, verem o segmento que é feito nesse país, a verem esse segmento do princípio ao fim a ser construído. Na verdade, trabalhamos muito próximo daquilo que é a forma de trabalhar quando se fazem curtas-metragens. O cinema de animação de autor em Portugal está a dar cartas. Houve o primeiro filme português candidato efectivo aos Óscars ,‘Ice Merchants’ de João González, algo que já podia ter acontecido com Regina Pessoa que chegou à short list dos Óscars. Com esta longa, você esteve no festival de animação de Annecy com este filme e já conquistou vários prémios em 2022. Ou seja, o cinema de animação de autor português realmente está a dar cartas, apesar de não ter assim tanto dinheiro? Eu acho que o cinema de animação é curioso porque ele inicia-se com o Abi Feijó num primeiro filme que ele consegue o apoio do Instituto Português do Cinema que, na altura, não tinha concursos só para a animação, portanto, os concursos eram para cinema na generalidade, ele consegue um primeiro apoio e ele e o Fernando Galrito são a geração que luta pelo apoio ao cinema em concursos separados da imagem real. Isso foi uma conquista enorme porque criou uma base financeira para a produção que tem dado resultados ao longo destes últimos anos e, portanto, há gerações de realizadores como o Vasco [Sá] e o David [Doutel], a Laura [Gonçalves] que fizeram um percurso como eu fiz. Eu comecei por trabalhar nos filmes do Abi Feijó, do Zepe e depois um dia comecei a fazer os meus. E a maior parte destes realizadores têm esta escola, que é não só as escolas que existem em Portugal e que ensinam o cinema de animação, mas depois quando entram no mercado de trabalho começam a trabalhar em filmes de outros realizadores até um dia terem a sua oportunidade e começarem o seu percurso como realizador. Essa conquista ao nível das curtas já existe e felizmente, à excepção do ano 2011 em que não houve apoio ao cinema, tem-se mantido regular. Agora, havia aqui o salto a dar para as longas-metragens que felizmente foi dado, há uma longa-metragem apoiada de dois em dois anos no ICA. É provável que nos próximos anos, com os candidatos que estão a propor e com o desenvolvimento do cinema de animação, faça mais sentido que o concurso em vez de ser bianual seja anual. Depois, há aqui um lado que nós não temos tão desenvolvido como a Espanha, que está aí mesmo ao lado, e que é a indústria do cinema de animação. A mim pessoalmente como realizador talvez não me interesse tanto, mas como produtor pode ser um caminho também para criar mais escala de produção, começar a trabalhar também para uma escala onde é possível mais facilmente encontrar mercado e dar oportunidade aos portugueses que são formados nas escolas portuguesas de poderem continuar a trabalhar em Portugal sem terem que emigrar. Porque o que acontece muitas vezes em Portugal é termos formação, temos já algumas escolas em várias zonas do país, mas quando o talento é grande, os animadores acabam a trabalhar para fora. Pronto, isso é uma conversa longa e podemos um dia falar sobre isso, mas parece-me a mim que o cinema de animação, ao nível do filme de autor de curta-metragem, é um cinema que já conquistou quase todos os prémios que existem, só falta mesmo o Óscar. No maior festival de animação de França, que é o festival de Annecy, a Regina Pessoa já ganhou esse festival, enfim, já tivemos realizadores nos maiores festivais do mundo. Agora, para mim, é este o salto que falta dar. As longas, demos o salto nos últimos anos. Saiu a minha longa no ano passado e saiu a longa do Nuno Beato também e irão sair outras em breve, há mais duas longas que estão em produção. Acho que as longas-metragens vão-se começar a afirmar. Para mim, a grande questão aqui está no salto das séries de animação, que Espanha é um país fortíssimo em séries e em França também é muito forte, e nós em Portugal é quase inexistente. Isso prende-se, julgo eu, com dois passos que têm que ser dados. Um que me parece que é o mais importante que é as televisões fazerem investimentos significativos na produção de séries de animação em Portugal, o que não acontece neste momento. O outro é também o ICA, Instituto Português de Cinema, começar a apoiar as séries de animação com valores mais substanciais porque uma série de animação não se faz com 500 mil euros. Uma série são vários episódios, dependendo da duração de cada episódio podem ser várias horas de programação e precisam de financiamentos que rondem os três milhões, no mínimo. Portanto, o custo desta longa é o mínimo de um trabalho de uma série com alguma dimensão. Julgo que é isso que falta em Portugal. Acho que as curtas vão continuar, as longas, espero eu, que se vão instalar e ganhar esse espaço que já estão a conquistar e falta este salto que é o salto da produção de conteúdos de séries. Coproduzido entre Portugal, França, Bélgica e Holanda, "Nayola" esteve em vários festivais em 2022, ano em que conquistou vários prémios, nomeadamente de Melhor Longa Metragem de Animação no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, no Animest Film Festival, na Roménia, no Manchester Animation Festival, no Reino Unido, no Anilogue International Animation Festival in Budapest & Vienna, na Hungria, no Afrykamera African Film Festival, na Polónia, (onde também conquistou o Prémio do Público). O Prémio do Público também foi para « Nayola » na Mostra de Cinema de São Paulo, no Brasil, assim como no Cinanima – Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho, em Portugal. Houve, ainda, o Prémio BE TV da Melhor Longa Metragem da Seleção Oficial do Festival Internacional do Filme de Animação de Bruxelas (Anima), assim como o Cocomics Best Music e DHL Diversity prize no Bucheon International Animation Festival, na Coreia do Sul. O filme esteve, também, em competição na Selecção Oficial no Festival de Annecy, em França.
3/14/202328 minutes, 8 seconds
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Azagaia, "um dos melhores rappers da lusofonia"

Morreu o rapper moçambicano Azagaia aos 38 anos. O anúncio foi feito ontem à noite pela Televisão de Moçambique Não foram avançadas as causas da morte do artista.Azagaia era um nome cimeiro da cena musical moçambicana, nomeadamente do espectro do hip-hop. De seu nome Edson da Luz é autor de letras de intervenção que lhe valeram o título de rapper do povo. As rimas de Azagaia são “dedos na ferida” na governação moçambicana. Em 2008 três dias após violentas manifestações que paralisaram Maputo, devido a aumentos de preços, Azagaia lançou "O povo no poder". Já não caímos na velha história / Saímos para combater a escória / Ladrões / Corruptos / Gritem comigo para essa gente ir embora / Gritem comigo pois o povo já não chora. Isto é Maputo, ninguém sabe bem como / O povo que ontem dormia hoje...perdeu o sono / Tudo por causa desse vosso salário mísero / O povo sai de casa e atira para o primeiro vidro / Sobe o preço do transporte, sobe o preço do pão / Deixam o meu povo sem Norte deixam o Povo sem chão. A música e a voz de Azagaia não têm espaço na rádio e televisão públicas. Foi várias vezes acusado de ser intérprete da oposição. Todavia Azagaia nunca poupou nada, nem ninguém nas palavras e nas críticas como se pode ouvir em “As mentiras da verdade”: E se eu te dissesse / Que a oposição neste país não tem esperança / Porque o povo foi ensinado a ter medo da mudança / Mas e se eu te dissesse / Que a oposição e o governo não se diferem / Comem todos no mesmo prato / E tudo está como eles querem. Filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana, em 2014, Azagaia afastou-se dos palcos e pouco tempo depois anunciou que padecia de um tumor cerebral. Em Abril de 2016, voltou ao palco, mas desde essa altura permaneceu numa posição discreta no panorama artístico. O rapper moçambicano Duas Caras conheceu e trabalhou com Azagaia e ao microfone da RFI fala no desaparecimento de “um dos melhores rapper da lusofonia”. Azagaia é um dos melhores rappers da lusofonia e é uma figura incontornável da sociedade moçambicana. Deixa um grande vazio no hip-hop lusófono e em particular no hip-hop nacional. (...) Era um revolucionário, tinha uma abordagem sociopolítica bastante profunda, bastante abrangente. Em todos os países onde se fala português, praticamente todos conhecem o nome Azagaia. É uma grande perda para a cultura moçambicana, para o activismo político também. É uma voz que se cala, uma voz inconformada com as diferenças sociais no nosso país. Deixa um grande vazio.” Adriano Nuvunga, presidente do Centro Para Democracia e Desenvolvimento, sublinha que o legado de Azagaia irá permanecer para “a eternidade”. O povo moçambicano acordou com um sentimento de profunda tristeza pelo desaparecimento físico do seu mais querido filho que é o Azagaia, que soube pelo seu trabalho, pela sua voz, interpretar o sofrimento diário, a miséria e a fome causadas pela corrupção da liderança, da cúpula política deste país e, por isso, Azagaia é chorado por todos. Autor de músicas emblemáticas, apesar de estar retirado dos holofotes continuava a ser ouvido por toda a gente “e para a eternidade. Azagaia é um ícone da luta, é um ícone da resiliência do povo moçambicano perante as injustiças. As suas músicas são o instrumento que ele utilizava para galvanizar o povo moçambicano para continuar a lutar,” acrescentou.  Edson da Luz, o nome do rapper Azagaia, morreu, aos 38 anos, na quinta-feira à noite, em casa, na cidade da Matola, em circunstâncias até agora não esclarecidas. 
3/10/202311 minutes, 47 seconds
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Pamina Sebastião: "Uso a arte como ferramenta do meu activismo"

"Mestres do meu universo" foi a primeira exposição a solo da artista e activista angolana Pamina Sebastião, na galeria Jahmek. Trata-se da continuação do projecto que iniciou em 2019, um processo de auto-reflexão que se chama Só belo mesmo. Um projecto que passa por escritos, colagens e desenhos. Pamina Sebastião vive em Luanda é jurista e mestre em Direito Internacional e Relações Internacionais, dedica-se ao activismo há vários anos. "Antes de tudo sou activista e uso a arte como ferramenta do meu activismo", apresenta-se Pamina Sebastião. "Mestres do meu universo?" é a primeira exposição a solo da artista. Trata-se da continuação do projecto que iniciou em 2019, um processo de auto-reflexão que se chama Só belo mesmo. Um projecto que passa por escritos, colagens, desenhos. "A ideia é trazer algumas das perguntas ou dos questionamentos que tenho ligados à colonialidade do poder, ligadas às construções de categorias de géneros, da questão da sexualidade e trazer estas questões ao público", explica.  Pamina Sebastião acredita que houve "uma evolução entre o que pensamos ser o colonialismo, de um tempo histórico e a colonialidade, uma estrutura global que continua a alimentar categorias como a de género, de raça, de classe". Um exercício feito olhando para questões de raça, género, sexualidade como inscrições feitas ao longo do tempo sobre aquilo que chamamos corpo. Por outras palavras, Pamina Sebastião defende existir uma estrutura de poder alimentada por ideias "do que somos, do que é ser homem, do que é ser mulher... Uma estrutura racista, patriarcal, capitalista que alimenta estas categorias, para se manter no poder. É particularmente importante falar disto num contexto como o de Luanda, que não tem debates aprofundados de como é que o ideal da branquitude ainda continua a ser uma realidade e de como o racismo ainda acontece aqui". Pamina Sebastião fez parte de vários colectivos e organizações ligadas a questões de género e sexualidade: o Ondjango Feminista, o Arquivo de Identidade Angolano e o projecto LINKAGES Angola. Hoje faz parte também da direcção da The Other Foundation, uma organização LGBTIQ'+ regional fazendo também consultoria de estigma e discriminação a nivel nacional . No geral tem trabalhado num activismo focado em discussões de género e sexualidade.
2/21/202314 minutes
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"Hápax" de Mattia Denisse no Le Grand Café em Saint-Nazaire

Até ao dia 30 de Abril de 2023, o Le Grand Café em Saint-Nazaire, no oeste de França, acolhe a exposição "Hápax", do artista francês residente em Portugal, Mattia Denisse. A curadoria da exposição ficou a cargo de Anne Bonnin. Trata-se da primeira exposição pessoal numa instituição francesa deste artista que nasceu em Blois e se instalou em Lisboa há 24 anos.  “Hápax” significa uma palavra de uso único, à qual o artista atribui uma multiplicidade de caminhos e significados que se multiplicam numa infinidade de consciências. Enigmas, trocadilhos, jogos de palavras e de desenhos.  Para Mattia Denisse a exposição representa um “bom regresso” a França, num local que o “acolheu muito bem”. Trata-se de uma exposição essencialmente composta por desenhos, o meio preferido por Mattia Denisse “na medida em que é a expressão mais rápida do pensamento” Questionado sobre a ausência de legenda ou títulos junto das obras, o artista explica que será distribuído aos visitantes uma folha com a respectiva legendagem, todavia não se trata de uma explicação da obra, mas um complemento ao desenho. A curadoria da exposição ficou a cargo de Anne Bonnin, crítica de arte e profunda conhecedora da cena artística portuguesa.  Em 2022, Anne Bonnin assinou a curadoria das exposições "Modernités Portugaises” na Maison Caillebotte, em Yerres, perto de Paris e “Les Péninsules démarrées” no Frac Nouvelle-Aquitaine MÉCA – Bordéus. Em 2019, foi Anne Bonnin que organizou a primeira retrospectiva em França da artista portuguesa Lourdes Castro no Museu Regional de Arte Contemporanea Sérignan.  Ao receber o convite do Le Grand Café de Saint-Nazaire, a escolha de Mattia Denisse foi para Anne Bonnin uma evidência. “Conheci o Mattia em Portugal e esta exposição é, de alguma forma, o prolongamento, a continuidade dos trabalhos que fiz sobre Portugal.  O seu universo gráfico seduziu-me e, também, a sua imaginação alimentada pela literatura que eu também gosto, como o Alfred Jarry, a patafísica… esta dimensão surreal, esta relação com a antropologia e esta forma de a desenvolver e explorar. É um imaginário labiríntico que nos leva para histórias em que nos perdemos e nos reencontramos, é um mundo que também vem do inconsciente, mesmo que o Mattia prefira a palavra imaginário. Fui seduzida por este jogo, esta relação entre a língua e a imagem, muito livre, e de facto o desenho é uma forma de nos levar a mundos diferentes.  Eu gosto da forma como ele brinca com diferentes linguagens.” A exposição “Hápax” de Mattia Denisse com a curadoria de Anne Bonnin está patente, no Le Grand Café em Saint-Nazaire, no oeste de França, até ao dia 30 de Abril de 2023.
2/15/20238 minutes, 57 seconds
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Filme sobre cantora do Maio de 68 ecoa com a França de hoje

O documentário “N’Effacez pas nos traces ! Dominique Grange, une chanteuse engagée” dá voz a uma das vozes mais conhecidas de Maio de 1968. O filme teve ante-estreia a 21 de Fevereiro, no Forum des Images, em Paris, e ecoa com os protestos de hoje contra a reforma do sistema de pensões em França. Depois de um filme dedicado a José Mário Branco, um dos ícones da canção de intervenção portuguesa [“Mudar de Vida, José Mário Branco, Vida e Obra” (2014) que co-realizou com Nelson Guerreiro], o realizador português Pedro Fidalgo vai estrear em França um outro documentário em que a cantiga volta a ser uma arma. Trata-se de “N’Effacez pas nos traces ! Dominique Grange, une chanteuse engagée” [“Não Apaguem os Nossos Rastos! Dominique Grange, uma cantora de protesto”, sobre uma das vozes mais conhecidas de Maio de 1968 e que continuou a militar nas ruas e nos palcos por diferentes causas. O filme ecoa com o movimento social que se tem sentido em França contra a reforma das pensões. Depois de se ter estreado em Portugal, no ano passado, o documentário chegou às salas francesas a 22 de Fevereiro, depois de uma ante-estreia na véspera em Paris. RFI: O filme começa com estas palavras da cantora Dominique Grange: “Quando olhamos à nossa volta, é difícil não ficarmos revoltados…”. Foi a revolta que o motivou a fazer este filme com a Dominique Grange? Pedro Fidalgo, Realizador: Sim, a revolta é algo que está intimamente ligado aos dois filmes. Quando se diz revolta, não é simplesmente um grupo de enraivecidos que vão para a rua e depois voltam para casa zangados. Quer dizer, há um lado também festivo. Nós podemos ir para a rua de forma alegre e tentar não nos desmotivar com aquilo que vemos no dia-a-dia, seja no trabalho, seja nas prisões, seja no quotidiano com a guerra, com tudo o que está à nossa volta, com a inflação, em que nós sentimos que há um sistema e uma sociedade em que as pessoas acabam por ficar envolvidas sem quererem estar. Então, essa forma de vivermos todos numa sociedade que nos ultrapassa acaba por levar-nos muitas vezes a termos um sentimento de revolta individual. Refilamos em casa, zangamo-nos, às vezes, com aqueles que estão ao nosso lado, quando, na verdade, quando nos juntamos na rua ou nos juntamos aos outros, acaba por ser quase uma festa colectiva que leva as pessoas a serem solidárias na rua. O documentário ecoa muito com o que vivemos hoje. Manifestações contra a reforma das pensões e novamente milhares de pessoas nas ruas. O título “N’effacez pas nos traces” é o nome de uma das canções de Dominique Grange e faz referência aos que lutaram contra as opressões e desigualdades no Maio de 68. Meio século depois - e mesmo se o antigo Presidente Nicolas Sarkozy chegou a dizer que estava na hora de virar a página de 68 - porque é que ouvir Dominique Grange tem qualquer coisa de intemporal? As canções da Dominique Grange têm de intemporal o que têm outras canções históricas que marcam um período específico, mas que podem ser mais tarde ouvidas e não só relembrarem o que aconteceu naquele momento – estou a pensar na Internacional na Comuna de Paris ou outras canções que marcaram a história, como na Revolução Russa ou na Guerra Civil de Espanha. São canções que marcam um período, mas que ouvidas muito mais tarde, noutro contexto e noutras situações, podem ser adaptadas. No caso da Dominique Grange, algumas canções já têm 50 anos - as do Maio de 68. Como o Maio de 68 foi uma ruptura completa com a sociedade que existia, mas também houve mudança no pós-68, existem rastos que ficaram até hoje por resolver, nomeadamente as questões das violências policiais, do racismo, houve bastantes recuos dos anos 80 para cá em tudo o que foram conquistas sociais. A cantiga “Abaixo o Estado Policial” é uma cantiga que é bastante interessante porque foi cantada por manifestantes durante a Lei do Trabalho El Khomri em 2016 e voltou. Muita gente talvez cante as canções dela sem saber que são dela. As canções de Dominique Grange são uma forma de resistência a todas as formas de opressão. Uma das músicas mais conhecidas de Maio de 68 foi, precisamente, “A bas l’etat policier”, mas a música não se esgotou nessa altura. Com o movimento dos coletes amarelos, a violência policial regressou, mas também com a morte, por exemplo, de Adama Traoré, numa esquadra de polícia em 2016,  e tantos outros crimes motivados pelo racismo. Porque escolheu esta música como um dos fios condutores do filme? Eu não acho que a violência policial regressou, ela sempre existiu. Simplesmente, ela era muito dirigida a um certo tipo de comunidades, nomeadamente populações estigmatizadas, emigrantes, bairros populares, e não afectava tanto uma classe média branca como aconteceu com os coletes amarelos em que pessoas que estavam bastante longe dessas violências – ou que ouviam falar através dos jornais e televisão – tivessem um contacto directo. Com os coletes amarelos, vimos bem a evolução do movimento, ao início as pessoas gritavam ‘Os polícias connosco’, ‘Juntem-se a nós’ e, no final, perceberam que não era bem a palavra-chave para levar para a frente o movimento, acabando por manifestar-se ao lado de movimentos mais anti-polícia. Depois de ter cantado nos diferentes comités de trabalhadores no Maio de 68, a Dominique Grange esteve no partido La Gauche Prolétarienne, chegou a ser presa, a dada altura teve de ir para a clandestinidade, continuou o militantismo contra tantos tipos de opressão e acabou por cantar sempre e sempre cantigas de intervenção social. Ela diz “Je continue en colère” [“Continuo com muita raiva”] perante o estado do mundo. Porque é que ela continua com tanta raiva? Essa questão teria de ser feita a ela, mas ela diz no filme. Ela está farta de ver que sempre que as pessoas se querem manifestar e exprimir o que sentem, na realidade, há sempre uma força do poder, do Estado, que vem para as calar, para as violentar. São estas injustiças que ela vê. Quando ela fala de injustiça, estamos a falar de coisas bastante concretas: estamos a falar do apartheid que existe actualmente contra o povo palestiniano pelo Estado racista que se tornou Israel; estamos a falar de colonialismo pelo Estado chileno em relação às comunidades autóctones mapuche no Chile – um país com quem ela tem uma grande relação porque adoptou filhos de origem chilena e mantém uma ligação forte ainda hoje; e, depois, também aqui em França, quando abordamos coisas do passado para remetê-las no presente – a ideia de falar de Wahid [Hachichi], o jovem que foi assassinado pela polícia em 1982 era para mostrar que desde então as coisas não mudaram. Entretanto, tivemos vários crimes policiais em França, como a morte de Adama Traoré, de Théo [Luhaka], de Lamine Dieng... Temos uma série de nomes, de jovens, sobretudo homens, rapazes, negros, de bairros populares, que foram assassinados por puro e simples racismo. Isso são coisas denunciadas no filme e que é preciso ter em conta. Algumas canções de Dominique Grange ainda são hoje cantadas em protestos. Ela diz no documentário que a cantiga é uma arma, uma frase que no imaginário português remete logo para o título de uma das mais conhecidas músicas de José Mário Branco, sobre quem também co-realizou um documentário. Porquê este interesse pela cantiga enquanto arma?  A canção de protesto, em português, diz-se de intervenção, mas é um termo que foi sempre muito recusado pelos próprios cantores de intervenção. O termo exacto seria mais canção de protesto. A canção de protesto é uma coisa que é bastante importante que é o facto de ela ser histórica, relatar não só os factos, mas também permitir uma análise e uma compreensão do que se passava numa certa época, não só nas letras, mas também na forma como é feita e cantada e produzida. Se formos ver as canções do Grupo de Acção Cultural em Portugal ou mesmo as de Dominique Grange no Maio de 68 ou no pós-Maio de 68, são cantigas que foram autoproduzidas de forma colectiva, que retratam o espírito de uma época e de um momento. São cantigas que também podem ser de amor e que, se calhar, têm uma preocupação não intimamente ligada só ao outro individual mas ao outro colectivo. Então, as canções de intervenção que sempre foram marginalizadas desde os anos 80 para cá – não em França porque a canção de intervenção esteve em todos os géneros musicais e continua – mas em Portugal houve um período em que tudo o que fosse de carácter político, houve um afastamento, não claro, para que a coisa passasse melhor nas rádios. A canção de protesto é mesmo um termo quase ocidental para determinar canções da oposição ou de inconformismo com o regime. No caso do Wolf Biermann, que era um cantor sobre o qual gostaria de fazer um filme, é o contrário. Ele foi um comunista que acreditava no regime comunista da RDA e acabou por ser expulso porque era tão contestatário que ao criticar o próprio regime em que ele acreditava, acabou por ser expulso. É um exemplo que a canção de protesto que há nos países no hemisfério sul não tem esse carácter porque a música em si é uma forma de protesto porque foram países que foram colonizados e que têm uma história diferente. Assim como a cantiga é uma arma - e a Dominique diz no filme que pode atravessar as fronteiras, as prisões, os muros - um filme também pode ter a sua utilidade. Vemos no genérico do documentário que foi filmado e produzido através de um "crowdfunding", mas o Pedro Fidalgo também agradece ao realizador Jean-Luc Godard, que revolucionou o seu próprio cinema no Maio de 68. Qual foi o papel dele? Como é que ele ajudou? Uma manhã, estava eu a trabalhar e recebi um telefonema do Jean-Paul Battaggia, que era o seu assistente, a dizer que o Jean-Luc Godard queria apoiar o "crowdfunding'"e participar. Claro que fiquei um bocado surpreendido, na altura fiquei a pensar que era algum amigo a brincar comigo porque sabe que eu gosto muito dos filmes do Jean-Luc Godard mas, na verdade, não. Ele participou e o agradecimento especial no filme tem a ver com o apoio que foi feito, mas também com o facto de ser um autor que me inspirou de uma certa forma em termos de montagem. Daí esse agradecimento especial. Houve discussões no momento da montagem do genérico se não seria discriminatório em relação aos outros apoiantes, mas pela inspiração que o autor tinha dado e pela iniciativa, daí esse agradecimento especial ao “camarade Jean-Luc”! Como é que conheceu a “camarada Dominique Grange” e como é que teve a ideia de fazer um filme com ela? Assim que acabei o filme do José Mário Branco, escrevi-lhe no Facebook, expliquei-lhe o que fazia, enviei-lhe o outro filme, encontrámo-nos para beber um café, ficámos duas a três horas a conversar e, pronto, começou o filme. Já o mostra no filme, mas como é que ela é? É preciso ver o filme. É uma mulher combativa, com uma certa alegria de viver, sempre solidária, disposta a ajudar o outro, que não pára... E cuja militância não se ficou pelo Maio de 68… Sim. É uma pessoa que sempre evoluiu com o seu tempo e que não ficou estagnada numa época.
2/13/202315 minutes, 53 seconds
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Prémio distingue pesquisa sobre judeus de origem portuguesa em França salvos do Holocausto

Em 1943 e 1944, cerca de 200 judeus residentes em França foram repatriados para Portugal e conseguiram fugir do Holocausto graças ao envolvimento de vários diplomatas portugueses. Ainda que sejam um pequeno número - quando tantos milhares não tiveram a mesma sorte – esta é uma história pouco conhecida e que foi contada pelo historiador Victor Pereira, um dos vencedores do Prémio Aristides de Sousa Mendes. RFI: Em que consiste este Prémio Aristides de Sousa Mendes? Victor Pereira, Historiador: É um prémio que data dos anos 90, que é atribuído pela Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses e que visa favorecer os estudos sobre a história e os estudos sobre a diplomacia portuguesa. Deram-lhe o nome de Aristides de Sousa Mendes - que é agora um diplomatas portugueses mais conhecidos da história - talvez com uma vontade de reparação porque, como sabem, o Aristides de Sousa Mendes tinha sido expulso da carreira diplomática e só foi nos anos 80 que em Portugal ele foi reconhecido e reabilitado. Então, é para os diplomatas portugueses um meio de apoiar os estudos sobre a diplomacia e de reparar uma falta que o ministério teve no passado durante o Estado Novo, durante a ditadura de Salazar. O que é que representa este prémio para si? Ficamos sempre muito honrados por o nosso trabalho ser reconhecido. Este é um trabalho que eu tive que apresentar, não é uma obra que já existia. Portanto, tive que o escrever de propósito para o enviar para o concurso.  É sempre agradável ser reconhecido e, sobretudo, sobre um tema que trata da diplomacia, mas também de alguns diplomatas durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. O trabalho chama-se “Derrubar o muro da indiferença e do preconceito - Os diplomatas portugueses em França e o salvamento dos judeus portugueses”.  Pode fazer-nos um pequeno resumo deste trabalho? Durante a Segunda Guerra Mundial, havia judeus que reivindicavam a nacionalidade portuguesa e que viviam em França, reivindicação que o Estado português não reconhecia desde os anos 1910 e alguns diplomatas, cônsules, tanto em Paris como em Marselha, vão mobilizar-se junto do ministério dos Negócios Estrangeiros que, nessa época é dirigido pelo Salazar, para que essa pessoas possam ser repatriadas para Portugal e não sofrerem a deportação e uma provável morte. Neste trabalho, fala de algo pouco conhecido na esfera pública que são os judeus que em 1913 se registaram no Consulado Português em Salónica (conhecida também como Tessalónica). Que história foi esta e porque é que não se fala disto? Já houve alguns artigos sobre este tema. Talvez esse tema não seja o mais original da minha investigação. Houve nos anos 90 - premiado pelo prémio Aristides de Sousa Mendes - um estudo de Manuela Franco para tentar compreender como é que em 1913 judeus que vivem em Salónica, que tinha pertencido ao Império Otomano e tinha passado à soberania grega, pedem a inscrição no Consulado de Portugal em Salónica. Muitos deles pensam que foram reintegrados na nacionalidade portuguesa porque eram descendentes de judeus que tinham sido expulsos e tinham deixado Portugal a partir do século XV e XVI com a Inquisição e que tinham vivido em Salónica, que era uma cidade cuja metade da população era de origem judaica e sefardita, tanto da Espanha quanto de Portugal. Em 1913, eles temem que com a soberania grega eles percam influência, percam direitos, sejam obrigados a, por exemplo, fazer serviço militar. Então, eles tentam procurar a protecção de outros países e alguns deles – uns 300, não se sabe muito bem ao certo - vão conseguir ser inscritos no Consulado de Portugal em Salónica com o apoio do Cônsul de Portugal em Istambul. Disse que esta questão dos judeus que pediram a nacionalidade portuguesa por serem descendentes de judeus fugidos de Portugal quatro séculos antes, não foi a parte mais original do seu trabalho. Há uma parte, digamos, mais original nesta pesquisa? Eu estudei no arquivo do OFPRA – Office Français pour la Protéction des Réfugiés et des Apatrides - que é a instituição em França que, desde os anos 50, reconhece a qualidade de refugiado a pessoas que saem de um país porque são perseguidas. Eu trabalhei sobre o exílio português em França antes do 25 de Abril de 1974 e fui consultar os processos no OFPRA. Então, vi os processos de portugueses e vi os de pessoas que tinham nascido em Salónica e que se diziam portugueses. Eu não sabia de todo que eram judeus de Salónica e que, aos poucos, tiveram os papéis. Tive curiosidade de ver os arquivos para tentar encontrar o rasto a essa população e o que lhe aconteceu. Esta nacionalidade que eles reivindicam, que aparentemente lhes é dada mas vai ser contestada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros Português durante 30 anos, mais tarde acaba por salvar alguns deles do Holocausto, mas para outros deixa-os apátridas. Antes de mais, como é que eles chegam a França e como é que esta nacionalidade portuguesa vai salvar alguns? No início, esse assunto era um assunto dos Balcãs, ficava em Salónica. Só que muitos judeus de Salónica, nos anos dez, nos anos vinte, emigraram. Emigraram para Itália, emigraram para a Áustria,para o Brasil e muitos emigraram para França porque França tinha uma grande influência em Salónica - havia muitos jornais publicados em Salónica em francês. Então, esse problema que só existia em Salónica vai tornar-se um problema mundial e depois de 1913 vários consulados portugueses no mundo vão dizer que ‘recebemos pessoas que tinham documentos portugueses passados em Salónica e não sabemos muito bem como reagir, o que fazer. Serão eles portugueses, teremos que inscrevê-los, que lhes dar passaportes?’ É nesse período que o ministério diz ‘não se tem de dar mais passaportes…’ Mas, apesar disto, alguns cônsules,  não conhecendo bem as regras… Ou fazendo de conta que não conheciam?... Sim, fazendo conta que não conheciam, vão inscrevendo essas pessoas, às vezes dando passaportes, o que lhes permite circular. Tanto no tempo da I República, quanto no tempo do Estado Novo, o ministério dos Negócios Estrangeiros tenta sempre acabar com esse caso. Em 1936, há várias circulares do ministério dos Negócios Estrangeiros para tentar acabar de vez com esse caso. Quando se chega à Segunda Guerra Mundial, à ocupação de França a partir de 1940,  esses judeus muitas vezes já não tinham papéis porque o ministério não temia colocar multas ou ameaçar de expulsão cônsules que tinham passado papéis a esses judeus. Assim talvez se compreenda melhor o que é que aconteceu com o Sousa Mendes em 1940. Já é uma história que vem de trás. Em 1940, estes judeus não têm papéis portugueses, não são franceses, não são gregos, não são turcos e são apátridas, então nenhum Estado os protege, nenhum Estado pode ajudá-los e eles temem que podem ser as primeiras vítimas de rusgas, deportações. É por isso que alguns cônsules estão conscientes disto, conscientes que se não derem papéis a essas pessoas e se elas forem consideradas apátridas, os alemães podem fazer o que quiserem com elas e ninguém vai protestar. Por isso, alguns cônsules portugueses vão tentar quer eles sejam inscritos e que a partir de 1943 sejam repatriados para Portugal. Mesmo que muitos deles nunca tenham ido a Portugal antes. Apesar da política de Salazar, e da própria polícia política, em fechar as fronteiras aos refugiados judeus que fugiam das rusgas nazis e da deportação, houve diplomatas portugueses que salvaram pessoas. O mais conhecido é Aristides de Sousa Mendes, mas houve mais. Quem que foram eles e porque não se conhecem esses nomes? O Aristides de Sousa Mendes desobedeceu, desobedeceu às ordens que lhe tinham sido dadas, desobedeceu a várias regras do ministério dos Negócios Estrangeiros numa altura o Salazar era ministro dos Negócios Estrangeiros. O Cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto Magalhães, no fim dos anos 30 inscreve e dá passaportes a judeus e recebe uma multa e o próprio ministério diz muito claramente que se ele continuar vai ser expulso. Ele próprio escreve um longo ofício ao ministério a explicar que a política que é seguida de impedir os judeus de irem para Portugal é errada, até propõe demitir-se, aliás, ele vai para a reforma nos meses que se seguem. Mas, a não ser ele, os outros tentam sempre ficar dentro das regras, dentro da lei. Mas vão - pelo menos do que se vê nos arquivos - tentar explicar ao ministério e ao próprio Salazar que as regras podem conduzir à morte e à deportação destas pessoas. Tinha-se criado, nos anos 30, em Portugal, no Estado Novo, a imagem que havia milhares de judeus que queriam deixar a Alemanha nazi e a Áustria depois da invasão alemã; que esses judeus eram muitos; que eram perigosos politicamente. Havia no seio da polícia política alguns agentes germanófilos e próximos dos nazis que escrevem em relatórios que não se devem aceitar judeus para não criar um problema semita em Portugal. Estes cônsules tentam explicar que não são muitas pessoas, que devem ser uns 400, 500, que Portugal não vai sofrer nenhuma invasão. Eles dizem que essas pessoas não vão ser um custo para Portugal porque muitos deles são comerciantes mais ou menos abastados - era também o grande medo do Estado português de ter refugiados que tem que hospedar e fazer sobreviver. Vão dizer, ainda, que são pessoas que não são comunistas, que não são subversivos, que são pessoas pacatas, talvez conservadoras e que Portugal não vai ter nenhum problema político - que era o grande medo do Salazar, mas também da polícia política que, a partir de 1940, tem o grande medo que os judeus que são refugiados em Portugal sejam uma ameaça à ordem e ao equilíbrio político imposto pelo Estado Novo. Então eles, vão sempre tentando, escrevendo relatórios mais ou menos extensos e a partir de 1943,1944 conseguem que judeus sejam repatriados, que Portugal lhes dê passaportes. Também temos que ver que se Salazar é convencido é porque o rumo da guerra parece mudar. A partir de 1943, a Alemanha sofre reveses na Rússia, mas também na África do Norte e muito provavelmente Salazar vê que ajudar algumas centenas… Quantas pessoas é que foram salvas? Dos cálculos e das listas que eu consegui ver, foram mais ou menos 200. Quando se fala do Aristides de Sousa Mendes diz-se que ele teria salvado milhares de pessoas. Sim, mas no caso de Sousa Mendes foram pessoas que fugiram do norte de França, fugiram de Paris, fugiram da Bélgica, do Luxemburgo, dos Países Baixos, foram milhares e milhares de pessoas que passaram por Espanha e por Portugal. Neste caso, era preciso negociar com a França de Vichy, negociar com a Alemanha e não havia assim tantas pessoas em França que podiam reivindicar uma inscrição, no passado, num Consulado português, tanto em França como noutro país. Ao reabilitar a imagem destes cônsules que ajudaram alguns judeus a fugir da deportação, não há o risco que se esqueça que eles foram parte da engrenagem da ditadura portuguesa? Por acaso, no artigo mostro o caso do cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto Magalhães, que não pára de pedir tolerância para com os judeus - porque Marselha era uma cidade com alguns judeus e nos anos 1940, depois da deportação, tornou-se um ponto fulcral de pessoas que queriam fugir de França rumo aos Estados Unidos. Mas também mostro que José Augusto Magalhães, quando era Cônsul em Marselha, vigiava exilados portugueses, comunistas, republicanos, anarquistas, que escrevia artigos na imprensa francesa de elogios a Salazar. Então, no caso do José Augusto Magalhães não há dúvidas. No caso do doutor José Luís Archer, que foi Cônsul de Portugal em Paris, era a mesma coisa e ele era da Legião Portuguesa. Apesar disto, eles mostraram alguma empatia e tolerância. O motivo que pode explicar talvez é que esses judeus iam ter com eles, eram pessoas muito educadas, com algumas posses, que eram muito diferentes dos portugueses que nessa altura viviam em França - entre exilados políticos comunistas, anarquistas, republicanos ou  trabalhadores muito pobres, muitas vezes analfabetos, ou pessoas com as quais os cônsules não tinham muito interesse em estar ou em falar. Pelo contrário, essas pessoas eram pessoas que às vezes falavam português e que eram pessoas socialmente de um meio com que eles gostavam de conviver. Há muitos estudos sobre isto, eram pessoas que não eram anti-semitas. Houve outras que eram – na PVDE, a polícia política, havia expressões anti-semitas. Houve alguns diplomatas, mas não estes, que também tiveram expressões anti-semitas. Esses parecem não ter preconceitos e vão tentando desconstruir os preconceitos. Dito isto, depois da Segunda Guerra Mundial, veio-se dizer que Portugal foi o refúgio dos judeus portugueses, que Portugal permitiu o salvamento de milhares. O que eu deixo claro, no fim do artigo, é que houve milhares de judeus que reivindicavam uma origem portuguesa, que tinham nomes portugueses e que não foram salvos. Houve mais de 40.000 judeus em Salónica, alguns de origem espanhola, alguns de origem portuguesa, e foram deportados e Portugal não fez nada para os salvar. Houve, ainda, o caso dramático dos judeus de origem portuguesa em Amesterdão. Alguns deles escreveram directa ou indirectamente a Salazar para tentarem ser salvos, eram mais de 4.500 e o Estado de Salazar não fez nada e quase todos -4.000- morreram na deportação. No caso francês foi um bocadinho específico porque houve cônsules que se mobilizaram. Mas, obviamente, que não se pode tirar deste artigo a lição de que o Estado Novo tentou salvar todos os judeus de origem portuguesa. Isso não é de todo verdade e é, por isso, que eu tento realçar, com algum pormenor, o papel desses diplomatas.   Victor Pereira foi um dos vencedores do Prémio Aristides de Sousa Mendes com o trabalho intitulado “Derrubar o muro da indiferença e do preconceito: os diplomatas portugueses em França e o salvamento dos judeus portugueses”. O prémio foi atribuído em "ex aequo" ao trabalho de de Zélia Pereira e Rui Feijó intitulado “Descolonizar não é abandonar, mas também não é ficar: A turbulenta descolonização do Timor Português (1974-1975).  
2/7/202316 minutes, 4 seconds
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Porquê o silêncio em torno dos arquivos das guerras de libertação?

O que explica o chumbo, pelo Parlamento português, da desclassificação dos arquivos das guerras de libertação ? A RFI falou com os investigadores Raquel Schefer e Franco Tomassoni que denunciaram “uma vontade de controlo da história” e de o Estado português se “preservar a si próprio”. O deputado Diogo Leão, do PS, alega que os únicos documentos que faltam desclassificar são apenas os da Marinha e o deputado Pedro Roque, do PSD, diz que o projecto atentaria contra "o bom nome" dos envolvidos. O projecto do Bloco de Esquerda de desclassificação dos documentos relativos ao período de 1961 a 1974, na posse dos arquivos históricos das Forças Armadas, foi chumbado no Parlamento português a 26 de Janeiro. O projecto mereceu os votos contra do PS, PSD e Chega. A favor votaram o PCP, PAN e Livre. A Iniciativa Liberal absteve-se. Raquel Schefer, professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle, considera que há “uma vontade de controlo da história e de reiteração de uma narrativa oficial” para perpetuar o que chama de “história completamente falsificada” relativamente ao colonialismo português e à repressão das guerras de libertação. Franco Tomassoni, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, diz que o Estado português está “a tentar preservar-se a si próprio”. Vedar o acesso aos arquivos não será, afinal, admitir que Portugal quer manter um certo “apagão histórico”? “Eu própria durante o meu processo de investigação me confrontei à inacessibilidade de alguns arquivos e fiquei bastante surpreendida com o chumbo. Penso que esse chumbo se deve, por um lado, a uma vontade de controlo da história e, por outro lado, de reiteração de uma narrativa oficial que perpetua certos pressupostos relativos ao colonialismo português e à repressão das guerras de libertação pelo Estado colonial e fascista português”, começa por descrever Raquel Schefer. Mas, afinal, o que está fechado a sete chaves? A investigadora responde, de imediato, que “há para esconder todos os massacres que ocorreram durante e antes das guerras de libertação” e não apenas o massacre de Wiryiamu, em Moçambique - cuja existência foi reconhecida, pela primeira vez, em 50 anos, em Dezembro passado, pelo governo de Lisboa - porque “houve muitos outros”. Em Wiryiamu, pelo menos 385 civis foram assassinados a 16 de Dezembro de 1972 mas, em Moçambique, por exemplo, a repressão mais visível começou com o massacre de manifestantes que exigiam melhores condições de trabalho, em Mueda, a 16 de Junho de 1960.  “Eu penso que se pretende, por um lado, proteger as Forças Armadas portuguesas e, por outro lado, perpetuar esses mecanismos de controlo e perpetuação de uma história completamente falsificada na medida em que, num certo sentido, se tenta legitimar as guerras que decorreram em África nos anos 60 e 70”, considera Raquel Schefer. A investigadora acrescenta que “o facto de só se falar de Wiryiamu acaba por esconder a multiplicidade e a complexidade dessa história de opressão” e sublinha que “dar tanta centralidade a esse caso específico esconde toda a série de massacres precedentes e posteriores, mas também os massacres que ocorreram já no período de transição, entre 74 e 75, como o massacre de Inhaminga, por exemplo”. Além disso, esta narrativa pode escamotear “toda a história de resistência e o paradigma de emancipação dos movimentos de libertação que hoje em dia foi praticamente excluído do espaço hermenêutico”, sublinha. Franco Tomassoni também teve “uma certa dificuldade em aceder aos arquivos” porque “ainda há muitos documentos classificados que poderiam ter aberto pistas para investigações interessantes e temas inexplorados”. “Não é apenas a questão de se chumbar a desclassificação dos arquivos relativos exclusivamente aos massacres e à violência que as forças coloniais perpetuaram pela repressão dos movimentos de libertação. Claramente esse é um tema central e algo muito invisibilizado ainda hoje do debate público português, mas há um outro lamento. É o Estado a tentar preservar-se a si próprio porque durante a Guerra Colonial há uma circulação muito importante entre conselhos de administração de grandes empresas e militares de alta patente e representantes da diplomacia portuguesa. Apesar de tudo e apesar da Revolução de Abril, continuou a existir uma certa ideia de uma certa rectidão moral do Estado Novo que nunca teve grandes escândalos de corrupção, por exemplo. Falta completamente uma documentação sobre estes elementos”, explica o investigador.   As razões do chumbo explicadas pelos deputados Diogo Leão (PS) e Pedro Roque (PSD) Diogo Leão, historiador e deputado do PS, alega que não existem, nem no Exército, nem na Força Aérea, documentos anteriores a 1974 que ainda estejam classificados. O deputado socialista afirma que "os únicos que ainda faltam são da Marinha". Questionado sobre porque razão esses documentos não são, então, desclassificados, Diogo Leão aponta que há arquivos com dados pessoais que se devem proteger e arquivos da NATO que o Estado português não pode desclassificar. "São muito poucos os documentos classificados sobre a guerra colonial/do ultramar/de libertação", explica. "Os únicos que ainda faltam são da Marinha, segundo a informação que nós temos. O arquivo histórico militar e o arquivo histórico da Força Aérea já não têm nenhum documento classificado desse período", defende. Também Pedro Roque, historiador e deputado do PSD, diz que o projecto atentaria contra "o bom nome" dos envolvidos, alguns ainda vivos. "Há, na lei, mecanismos que protegem as pessoas, as pessoas que ainda estão vivas, e há um prazo, digamos, de algum nojo, no sentido da protecção desses nomes. Estar a abrir os arquivos onde se referem nomes de pessoas que estão vivas é contra a lei. Portanto, há aqui dois interesses em confronto : um é o da investigação histórica, o outro é o da protecção dos dados dessas pessoas e do bom nome dessas pessoas", explica. A memória das guerras de libertação pode, ainda, ser traumática e, talvez, comprometedora. Foram precisos 50 anos para que um primeiro-ministro português admitisse que o massacre de Wiriyamu existiu e para pedir desculpa. Porém, o mesmo discurso apontava o massacre como algo excepcional, como se fosse um ponto obscuro numa história muitas vezes considerada como “mais branda” do colonialismo português. O colonialismo português foi mesmo “mais brando”? Raquel Schefer avisa que a descoberta de novos elementos "virá pôr ainda mais em causa esse suposto carácter brando do Estado Novo e do colonialismo português”.  “Como se sabe, a partir de uma dada altura, o colonialismo amparou-se no lusotropicalismo para justificar a prevalência das colónias num contexto de descolonização após a Segunda Guerra Mundial. A descoberta de arquivos que venham corroborar as narrativas, também elas amparadas em dispositivos historiográficos e epistemológicos dos países libertados, a descoberta desses elementos virá pôr ainda mais em causa esse suposto carácter brando do Estado Novo e do colonialismo português”, considera Raquel Schefer. Já o deputado social-democrata Pedro Roque considera que é preciso "não estar fixado no retrovisor", ou seja, "sem pôr em causa a história e a memória", é preciso "conduzir na base da estrada que está por diante, mas o retrovisor é importante não vá o passado pregar-nos alguma partida". "Ver aquilo que é positivo e aquilo que une os povos e, neste caso, Portugal com estes países, é a única forma que eu acho que poderemos ultrapassar os próprios traumas da guerra colonial e também os problemas que esses países tiveram no seu processo de descolonização e, em muitos casos, aquilo que se seguiu à descolonização", considera. Por sua vez, o deputado socialista Diogo Leão faz questão de reiterar que apenas "alguns, mas muito poucos" documentos da Marinha estão ainda classificados e que, de resto,"os arquivos estão de portas abertas para os investigadores": "Nós queremos que se descubram as coisas como, de facto, foram e por isso é que os arquivos estão abertos para receber os investigadores. Há centenas e centenas de milhares de documentos por consultar, para explorar, para ler pela primeira vez depois de 50 ou 60 anos de estarem depositados no arquivo." Ter acesso a novas provas e a arquivos muito tempo silenciados, voluntariamente ou não, poderá fazer reescrever a historiografia e desmentir uma certa história oficial? Raquel Schefer nao tem dúvidas que sim e aponta a teorização de Jacques Derrida sobre a questão do arquivo [“Mal d’Archive”] ao lembrar que “os arquivos são sempre estruturados por relações de saber e poder e que o controlo dos arquivos é uma operação de natureza altamente política”. A investigadora diz que seria importante aceder-se também aos arquivos na posse dos Estados que foram colonizados e lembra que “no caso do cinema há arquivos importantíssimos para se poder complexificar a história do processo de construção do Estado-Nação moçambicano que desapareceram”. “Penso que o acesso a esses arquivos, tanto do lado do Estado português como do lado dos Estados-Nação africanos, seria importantíssimo para complexificar as aproximações históricas a esse período e para a produção de uma contra-história em oposição às narrativas oficiais”, argumenta Raquel Schefer. Além do acesso a todos os arquivos, fica a questão do que é que há nesses arquivos e o que é que desapareceu ou foi destruído. A investigadora acredita que “muitos arquivos terão sido destruídos nesse período de transição entre 74 e 75 em Moçambique e em Angola”, por exemplo. Raquel Schefer sublinha que um outro aspecto importante, retratado no filme “48” de Susana de Sousa Dias, é o facto de que “além dos massacres perpetrados durante e antes das guerras de libertação contra populações civis, também há o destino dos presos políticos africanos que foram altamente reprimidos e torturados” não só em Portugal mas também nos países africanos onde “a tortura chegou a um grau muito mais extremo”. Ou seja, “a desclassificação desses arquivos viria revelar alguns elementos sobre essa questão”, até porque nesse documentário, premiado com o Grand Prix do Cinéma du Réel, em Paris, em 2010, a realizadora Susana de Sousa Dias “não conseguiu descobrir qualquer documento administrativo, fotográfico sobre os presos políticos africanos”. Porém, o deputado Diogo Leão sublinha que os arquivos da PIDE/DGS deveriam estar na Torre do Tombo e não na posse das Forças Armadas, pelo que não estão abrangidos pela proposta que foi chumbada pelo Parlamento.       
1/31/202321 minutes, 23 seconds
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Chegar a maestrina é uma luta e um filme

Em França, chegou às salas, esta quarta-feira, o filme “Divertimento” que conta a história verídica de uma adolescente que quer ser maestrina. Com apenas 17 anos, filha de imigrantes e oriunda de um bairro rotulado como problemático, Zahia Ziouani enfrenta uma série de obstáculos e preconceitos que tentam travar a sua ambição. Zahia não desiste e acaba por criar uma orquestra sinfónica que pretende ser de todos e para todos.  Antes de ser filme, esta é uma história que aconteceu, como nos conta a sua protagonista, na vida real, Zahia Ziouani: “É uma realidade que ainda existe, o facto de haver tão poucas maestrinas. Quando comecei sempre me disseram que não era possível, que não era algo para mim, que não era uma profissão para as mulheres. Claro que foi preciso muita perseverança, combatividade e toda uma conjuntura, com uma família com muito amor, pais que se concentraram muito na nossa educação e nos valores necessários para conquistar um percurso como este”, contou à RFI Zahia Ziouani. Em todo o mundo, só haverá entre 4 a 6% de mulheres maestrinas numa orquestra sinfónica. Porém, se o filme mostra que é possível mudar as mentalidades, também levanta a questão se só mesmo excepções podem lá chegar e se, afinal, essa igualdade de género não é uma ilusão também na música… Zahia Ziouani admite que ainda hoje é uma luta. Ainda que um filme conte esta história, a realidade continua difícil. Foi difícil criar a orquestra, foi difícil acompanhá-la durante tantos anos e hoje é uma orquestra que vai festejar 25 anos, temos imensos projectos, fazemos muitos concertos, estamos entre os melhores, mas há novamente dificuldades. Para eu ter a sorte de dirigir grandes obras, como os meus colegas homens, não é apenas ter de trabalhar a dobrar, é um trabalho 500 vezes mais puxado porque tenho de arranjar financiamento, concertos, é preciso convencer… Hoje continua difícil. Zahia Ziouani acompanhou as filmagens e disse ter estado, com a sua irmã violoncelista, “muito atenta para que fosse bem feito e que não fosse um filme cheio de preconceitos sobre a periferia, sobre as minorias”. Eu consegui e na minha altura ainda tinha mais dificuldade em projectar-me porque não via jovens, não via mulheres, não via maestros oriundos de meios menos favorecidos. Hoje vemos a minha irmã no instrumento, eu a dirigir a orquestra, ou seja, há jovens que agora se podem identificar quando eu não tinha ninguém. Gosto de acreditar que não é uma ilusão e que vai abrir outros caminhos seja na música, seja noutros universos. É uma mensagem de esperança para dar azo aos jovens para sonharem. É fundamental ter sonhos. A história de Zahia foi adaptada ao grande ecrã pela realizadora Marie-Castille Mention-Schaar: “O filme mostra que tudo é possível, que nada é impossível na vida. Quando nos empenhamos, quando temos um sonho, quando estamos determinados, nunca se deve abandonar.” O actor franco-português Lionel Cecílio interpreta uma das figuras que abre portas à futura maestrina e também falou com a RFI sobre a importância e intemporalidade desta história que ecoa com os temas incontornáveis de hoje e de ontem. Oiça aqui.  
1/25/20239 minutes, 33 seconds
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"Interconnectedness" traz experimentação e instropecção à música de Carmen Souza

Carmen Souza e Theo Pas'cal estiveram em Paris para abrir o Festival Au Fil des Voix, que traz músicas do Mundo à capital francesa, num concerto na mítica sala La Cigale. Aos microfones da RFI, Carmen Souza, cantora luso-cabo-verdiana, falou do seu novo álbum, "Interconnectedness", e da cumplicidade entre França e Cabo Verde. Este novo trabalho, composto e produzido durante a pandemia, serve para nos lembrar, segundo Carmen Souza, do nosso lado humano, fora da rotina do quotidiano, que passa por diferentes emoções e que nem sempre nos deixa vivê-las plenamente. "O 'Interconnecteness' fala de uma conexão humana e espiritual. Estamos numa sociedade muito rápida e que quase nos obriga a uma rotina robótica e somos quase máquinas. Então é preciso lembrarmo-nos que somos humanos e que existem dias de alegria e dias de tristeza, existem dias de vulnerabilidade, de comunhão e partilha. São estes pequenos detalhes que são simples, mas que nos esquecemos", afirmou a cantora. No seguimento do álbum "The Silver Messengers", lançado no final de 2019, o novo trabalho "Interconnecteness" reflecte o período do confinamento, onde estes artistas aproveitaram para dar asas à experimentação, gravando o álbum em locais inesperados, mas também a introspecção longe dos palcos. "Este álbum exprime a experimentação e a introspecção, fomos à procura da nossa essência e de perceber o que é que estamos aqui a fazer, o que é a nossa música, como podemos fazer diferente. O álbum reflecte toda essa procura", explicou. Um dos exemplos desta experimentação e introspecção, é a música Kuadru Pintadu, em que Carmen Souza canta em cinco línguas. "O Kadru Pintadu é uma tela, no fundo, em que todos fazemos parte dessa tela, todos nós temos um contributo, trazendo cores e texturas como se fosse um pintor que desse várias pinceladas diferentes, é uma tela com som. Onde nós todos com as nossas línguas - como eu sou uma apaixonada por línguas - também adicionamos a esta orquestra, como se fosse uma música línguas e neste tema canto em cinco línguas para mostrar essa diversidade e riqueza", indicou a cantora. Carmen Souza participou no concerto de abertura do festival Au Fil des Voix, que decorre em Paris, e disse que há muita cumplicidade entre Cabo Verde e o público francês, ajudado pela diáspora cabo-verdiana em França. "O último concerto que fizemos, antes da pandemia e de tudo fechar, foi em Paris. Então ficou aquele gostinho de algo por acabar, então é bom voltar a Paris e sentir o público. Cabo Verde, na realidade, está entre dois espaços: o espaço lusófono e o espaço francófono e existem muitos cabo-verdianos aqui e esta diáspora recebe dos dois lados. Claro que o público francês, no geral, tem uma apreciação muito grande pela música cabo-verdiana", concluiu 
1/25/202312 minutes, 49 seconds
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"Migrants é a ode à mais bela epopeia do ser humano"

O músico, autor, compositor e escritor cabo-verdiano Mário Lúcio está em Paris para participar no festival "Aux Fil des Voix" que tem lugar esta noite, 24 de Janeiro. O fundador do grupo Simentera e antigo ministro da Cultura vai actuar na sala La Cigale, ao lado das cantoras Cármen Souza e Lucileba, numa noite dedicada a Cabo Verde. Em entrevista à RFI, Mário Lúcio explicou as razões da música cabo-verdiana continuar a apaixonar o mundo e falou ainda do último álbum "Migrants". Após uma pausa de alguns anos, Mário Lúcio lançou no passado mês de Novembro o décimo álbum “Migrants”. Um álbum que canta a beleza do percurso humano, fazendo ecoar o coração da humanidade. Mário Lúcio afirma que este álbum pretende passar a "mensagem do amor", fazendo uma homenagem àqueles que partiram à procura de melhores condições de vida e aos que perderam a vida quando tentaram chegar a lugar seguro. "Neste disco falo da migração, uma das mais belas epopeias do ser humano, que trouxe diversidade para o planeta, a ocupação do território, a evolução humana em todos aspectos, hoje também é sinónimo de drama, de vergonha e de morte. Faço a aqui uma homenagem àqueles que perderam à procura de condições melhores", referiu. O single "Migrants Shakespearience" é inspirado num acontecimento real, ilustrando uma notícia de 2008 onde um navio de turistas socorre um pequeno bote de migrantes no Mediterrâneo. Questionado sobre a necessidade de se criarem condições para que as pessoas não tenham de correr estes riscos, o músico cabo-verdiano defende que a aposta deve ser "na livre circulação das pessoas". "A maior injustiça do planeta é alguns julgarem-se donos de alguns pedaços do planeta, enquanto outros não têm acesso", explicou. O álbum "Migrants" mistura as múltiplas raízes de Cabo Verde. Às mornas, às coladeiras e ao funaná, o compositor acrescentou as influências afro-cubanas e novas sonoridades. A noção de mestiçagem, o diálogo e a harmonia, entre as culturas, também são o lema desta obra musical. Um álbum que pretende quebrar a noção de fronteiras, das barreiras linguísticas, das cores, religiões ou nações. Neste décimo disco, Mário Lúcio decidiu confiar os arranjos e a produção musical a Rui Ferreira, músico multi-instrumentista do Porto, afirmando que queria que a sua alma fosse lida por outra pessoa. "Nada melhor do que, num disco que conta uma epopeia, deixar-se levar pelas águas. Houve um momento em que eu disse ao Rui para ficar completamente à vontade. Eu quero que tu te vejas em mim. Eu quero de tu me vejas em ti. Com essa vontade conseguimos fazer coisas incríveis", acrescentou. “Migrants" foi nomeado para o Prémio da Crítica Alemã, uma das mais prestigiadas da Europa, fundada em 1963, por destacar a excelência da qualidade na área da música. "Ver como este prémio é organizado, fora da indústria, por críticos, jornalistas e que tem por objectivo ir procurar a excelência. Achei muito estimulante para mim, para o Rui Ferreira, que fez os arranjos, para todos os músicos que participaram, para a editora que confiou em nós, e também para Cabo Verde", reconheceu Mário Lúcio. O músico, autor, compositor e escritor cabo-verdiano Mário Lúcio está em Paris para participar no festival "Aux Fil des Voix" que terá lugar no próximo dia 24 de Janeiro. O fundador do grupo Simentera e antigo ministro da Cultura vai actuar na sala La Cigale, ao lado das cabo-verdianas Cármen Souza e Lucileba.     Veja aqui a entrevista integral em vídeo:
1/18/202328 minutes, 19 seconds
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"Diálogos | Piano a 4 mãos" de João Costa Ferreira e Bruno Belthoise

"Diálogos | Piano a 4 mãos" é o novo disco-duplo dos pianistas João Costa Ferreira e Bruno Belthoise. Um projecto que nasceu na Temporada Cruzada Portugal-França 2022, que reúne onze compositores dos dois países. No repertório constam onze compositores portugueses e franceses, obras escritas para piano a quatro mãos e interpretadas pelos pianistas João Costa Ferreira e Bruno Belthoise. "Este projecto nasce no âmbito da Temporada Portugal-França e é realizado em torno de compositores portugueses e franceses", começa por explicar o pianista português, João Costa Ferreira. "Diálogos | Piano a 4 mãos" reúne várias épocas da música, partindo do século XIX, XX até à contemporaneidade. "É muito importante interpretar obras de compositores vivos para desenvolver os repertórios português e francês. É importante encomendar obras novas e ter projectos originais", defende o pianista francês, Bruno Belthoise. Compositores românticos como Fauré, Camille Saint-Saëns, José Vianna da Motta, que neste disco tem uma obra gravada pela primeira vez, juntam-se a obras portuguesas contemporâneas e à obra do compositor belga, Jean-Pierre Deleuze. "Diálogo" nasce de um projecto pensado desde 2016, após vários concertos na rádio portuguesa, Antena2. Foram organizados três recitais, com programas diferentes, para constituir este repertório. "Foi uma experiência íntima com a gravação ao vivo. Esta obra representa muito bem a nossa maneira de tocar", explica Bruno Belthoise. "O facto de tocarmos piano a quatro mãos, de partilharmos o mesmo instrumento é quase um desafio. É um pouco diferente das outras formações de música de câmara; piano e flauta, piano e violino ou um quarteto de cordas. Há a parte da interpretação que varia consoante as obras. Esta formação gera desafios porque temos de cruzar braços, cruzar dedos, partilhar um espaço - tornando-nos malabaristas - temos de sentir a respiração um do outro e sentir as intenções musicais", descreve João Costa Ferreira. Bruno Belthoise lembra que no início do século XX, "muitos compositores portugueses viajaram para França à procura de mais conhecimento, em termos de harmonia e de composição. Paris era o ponto mais importante da modernidade não só quanto à música, mas na pintura ou na literatura. Tudo começou com o musicólogo, compositor e maestro português, Francisco Lacerda, que foi o primeiro a entrar na escrita moderna em Portugal". João Costa Ferreira realça, ainda, "o cruzamento mútuo entre os compositores franceses e portugueses", lembrando que," como diz o Bruno, terão sido mais os compositores portugueses que terão sido influenciados pelo modernismo francês". No tempo de Vianna da Motta, vários músicos como Hernâni Torres, Guilhermina Suggia, Óscar da Silva foram estudar para a Alemanha, graças ao mecenato do rei Dom Fernando II. "Esta foi uma época que deu muitos frutos, a nível musical em Portugal, porque os músicos portugueses começaram a ir estudar para fora do país, devido à injecção de capital e à construção do Sud-Express. Portugal abriu-se à Europa e houve a possibilidade dos músicos irem para fora aprender e voltar, numa espécie de importação de conhecimento", explica o pianista português. A suíte “Ein Dorffest”, de José Vianna da Motta foi gravada pela primeira vez neste disco "Diálogos | Piano a 4 mãos" de João Costa Ferreira e Bruno Belthoise. "Existe sempre património que está em risco de desaparecer. É preciso fazer um trabalho de recolha para que esse património não desapareça", defende o pianista português. João Costa Ferreira tem vindo a desenvolver um trabalho em torno do compositor Vianna da Motta, publicando a sua obra e editando-a, revendo manuscritos e gravando-a. "A gravação é um suporte muito importante para dar a conhecer uma parte do património que tem vindo a ser esquecido e que corre o risco de desaparecer", conclui.
1/10/202322 minutes, 37 seconds
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Codice Casanatense ou o encontro de civilizações entre os Oceanos Índico e Pacífico

O historiador indiano, Sanjay Subrahmanyam, acaba de lançar em França um livro sobre o "Codice casanatense", uma obra que ilustra o encontro de civilizações entre Portugal e os povos que vão do Cabo da Boa Esperança, no extremo sul de África, à China, a Leste, a meados do século XVI. Este livro, com a chancela da editora Chandeigne, levanta um pouco o véu sobre uma obra única que muitos mistérios continua a encerrar. "Les peuples de l'Orient au milieu du XVIe siècle: Le codex Casanatense par Sanjay Subrahmanyam" [Os povos do Oriente a meados do século XVI por Sanjay Subrahmanyam], em tradução livre para português permite apreender a dimensão da obra única que é este Codice casanatense. Uma obra conservada na Biblioteca Casanatense de Roma, em Itália, sobre a qual não se têm grandes certezas sobre o/os autor/es nem mesmo do seu proprietário. O primeiro proprietário conhecido foi João da Costa do Colégio de São Paulo de Goa, na Índia, tendo a obra sido enviada para Lisboa em 1627. As aguarelas ilustram os povos de latitudes tão diversas como povos africanos do Oceano Índico (caso da Abíssinia, actual Etiópia), mas também do Médio Oriente (Estreito de Ormuz, Pérsia [actual Irão], Turquia, Índia, Myanmar, Malaca (na actual Malásia), Indonésia e China, por exemplo. São retratados ofícios, profissões, costumes, preceitos religiosos, incluindo sacrifícios rituais ou preceitos do hinduismo, desconhecidos na época na Europa. E isto para além de elementos da flora ou da fauna, com legendas em português, de todos os povos africanos e asiáticos, do Oceano Índico ao Oceano Pacífico, com os quais os portugueses teriam, na altura, estabelecido contactos ou erigido feitorias. Sanjay Subrahmanyam é um conceituado historiador indiano, com cátedra no Colégio de França, ligado à Escola francesa de Altos estudos em ciências sociais e também às universidades de Louvain (Bélgica), Oxford (Reino Unido) ou da Califórnia (Los Angeles, Estados Unidos), ele publicou um vasto rol de obras sobre a presença portuguesa no Sul da Índia. Ele é, pois, o autor de um novo livro, editado pela Chandeigne em França sobre este encontro de civilizações que a expansão portuguesa veio proporcionar. Em conversa com a RFI ele levanta-nos um pouco o véu sobre esta obra etnográfica ímpar que, tantos séculos volvidos, muita curiosidade continua a suscitar.
12/30/202210 minutes, 44 seconds
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Jovens "invisíveis" ganham rosto na edição 2022 do Mozambique Fashion Week

A edição deste ano da semana da moda em Moçambique foi marcada por um desfile de meninos, adolescentes e jovens que vivem nas ruas da cidade de Maputo. Trata-se de uma iniciativa solidária que junta várias instituições e procura dar visibilidade aos chamados "invisíveis" e integrá-los na sociedade. A edição 2022 do Mozambique Fashion Week fez história. 16 adolescentes e jovens que vivem nas ruas de Maputo passaram pela passarela, transformaram-se em modelos e as luzes da ribalta tornaram visível quem todos os dias é praticamente invisível diante dos olhos da sociedade. Ruy Santos é o Responsável pelo Projecto Kaya, um espaço de inclusão económica e social, que decidiu despir preconceitos e vestir com estilo e glamour os jovens e adolescentes que horas antes percorriam as ruas da cidade à procura de meios de sobrevivência."Hoje aqui temos 16 beneficiários do Kaya que vão desfilar a mostrar essa colecção. São os invisíveis que são aquelas pessoas que são ignoradas na nossa sociedade e que nós aqui estamos a querer dar uma oportunidade para eles serem vistos e acreditarem que podem fazer parte também, eles fazem parte da sociedade e que a partir de agora podem sonhar com a transformação nas suas vidas", vinca o responsável. Esta iniciativa, diz Ruy Santos, pretende plantar sonhos para um dia colher vidas totalmente transformadas. "Este é apenas um ponto de partida, mas depois a seguir as pessoas vão ter direito, vão ter a oportunidade de ter uma formação profissional, vão ter uma formação profissional em corte e costura, em tecnologias de informação, cabeleireiro, barbeiro, esteticismo, manicure e pedicure e outras parcerias que formos estabelecendo", refere. "A ideia para esta colecção nasceu deste contexto de inclusão social, inspirada nestas pessoas, que a sociedade, nós, rotulamos e esquecemos e a quem não é dada outra opção senão a da sobrevivência diária". Este trecho do texto "os Invisíveis" da autoria de Soraia Abdula retrata a dura realidade do dia-a-dia de quem tenta sobreviver nas ruas de Maputo e de quem tenta sobreviver a exclusão económica e social, aos abusos físicos e psicológicos e a ser tratado como ninguém. Agora, Soraia Abdula ajuda a achar antónimos e a transformá-los em alguém. "Pessoas que nós queremos que sejam visíveis. Pessoas que que nós achamos quem tem direito a ter, um nome, um rosto e dignidade que é isso que é basicamente que o kaya dá. O kaya não é um refeitório social. O Kaya visa integrar aquelas pessoas, dar lhes capacitação profissional, dar-lhes sim uma refeição diária, para lhes devolver essa dignidade, mas também dar-lhes tudo o que eles precisam, as ferramentas necessárias para que eles sejam pessoas tal como nós, inseridas na sociedade", diz Soraia Abdula. E vestir essas pessoas com o melhor que há da moda que se faz em Moçambique e as colocar debaixo dos holofotes é a fórmula para a visibilidade revela Soraia Abdula,"porque estas pessoas, geralmente são invisíveis a uma grande franja da sociedade e nós queremos mostrar que é possível eles estarem num palco e serem modelos por um dia, mas o amanhã também vai ser diferente porque nos já conseguimos uma série de parceiros que estão dispostos a abraçar a causa e a dar uma oportunidade a estas pessoas, então, na verdade nós, não estamos a vender moda aqui m estamos a vender um sonho, estamos a vender oportunidade". E eles agora têm a rara oportunidade de passar pela passarela e exibir roupas criadas pela conceituada estilista Vanda Pereira que teve que transformar por completo o conceito e a forma de um desfile de moda tradicional para ir buscar gente que nunca tinha desfilado. "Não estamos a falar de modelos convencionais então, ao longo deste mês, não era só os ensaios para o desfile ou as provas de roupa. Era também ouvir a história individual de cada um e depois ter que chegar à casa, ter que processar. Não são histórias fáceis, mas é por isso que nós estamos aqui, estamos a dar cara a essas pessoas. Então, é um processo, foi desafiante, mas neste momento, sinto-me realizada" conta a designer. Vanda Pereira diz que os 16 improvisados modelos vestem e mostram 21 estilos de roupa que representam o modo de vida de pessoas que não conseguem adaptar-se às regras da sociedade ou que são excluídas por essa mesma sociedade. "Estão divididos em quatro famílias, cinco looks cada onde cada família nós demos um nome referente a uma situação das pessoas que vivem na rua porque nós temos, por exemplo, camuflados, temos aqueles que são um bocadinho mais escondido e é mais ou menos isso, esse tipo de história. Temos também uma das histórias são os 'techno'. Nós não estamos a falar de invisíveis como pessoas da rua como tal, mas estamos a falar de pessoas invisíveis que acabam ficando invisíveis dentro de casa. Adolescentes por exemplo entram, ficam no quarto, não conseguem comunicar com os pais, têm uma vida totalmente paralela, Então, nós tentamos abranger um bocadinho disto tudo", diz a criadora. A Colecção invisíveis de Vanda Pereira marca também o regresso dos desfiles do Mozambique Fashion Week, o maior evento moçambicano de moda que foi obrigado a parar durante pouco mais de 2 anos por causa da covid-19.  O longo tempo de paragem estimulou a criatividade, como revela Vasco Rocha o mentor do Mozambique Fashion Week. "O tema deste ano é o 'meu mundo', portanto sendo o meu mundo é o meu, é o teu é o nosso, é o mundo individual de cada um e a forma como nós de alguma forma podemos intervir e mudar. E de facto, a moda é uma indústria que tem o poder da transformação, tem o poder de alterar e educar pessoas. Então, esperemos que seja a leitura que as pessoas façam do evento deste ano além de obviamente apreciarem as colecções que têm sido muito boas" refere o impulsionador do Mozambique Fashion Week ao fazer o balanço desta iniciativa que este ano optou por transformar meninos de rua em modelos e colocar debaixo dos holofotes para o julgamento da sociedade, todas as incertezas, a pobreza, a exclusão social e económica, os abusos psicológicos e físicos e muitas vezes até sexuais de que são vítimas os jovens e adolescentes moradores das ruas da capital moçambicana. Vejam aqui mais algumas imagens do desfile de moda:
12/24/20229 minutes, 39 seconds
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Guineense Patche di Rima com quarto trabalho discográfico "Terapia de amor"

A RFI recebeu nos nossos estúdios Patche di Rima: o músico guinense, agora radicado em Paris, veio apresentar-nos "Terapia de amor", o seu quarto álbum a solo. 11 faixas gravadas entre Paris, Londres, São Paulo, Bissau e Lisboa, com músicos provenientes não só da Guiné-Bissau, também do Mali, Senegal, Benim, em línguas que incluem também o lingala da República Democrática do Congo. O afro beat deste trabalho discográfico tem, porém, como base de partida os ritmos guineenses como o gumbé.  O cantor guineense celebrou em Agosto em Lisboa, Portugal, no Teatro Tivoli 20 anos de carreira. Ele almeja em 2023, em que se assinalam 50 anos da declaração unilateral da Guiné-Bissau em Madina do Boé, um ano com grande visibilidade para a cultura do seu país natal. Patche di Rima apela aos guineenses para por cobro às querelas por forma a promover uma "Guiné-Bissau positiva", sem fazer um apelo à compra do seu álbum que gostaria que viesse a ser disco de platina.
12/19/202214 minutes, 26 seconds
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A "clínica imaginária de tratamento de vícios linguísticos" de Valério Maúnde

Neste magazine "Artes" travamos conhecimento com Valério Maúnde, escritor moçambicano e professor de português, que há dias atrás publicou na imprensa moçambicana uma crónica com formato de reportagem sobre a inauguração imaginária de uma "clínica de tratamento de vícios linguísticos". Este artigo algo provocatório tinha por objectivo chamar a atenção sobre o uso por vezes inadequado da língua portuguesa nos órgãos de comunicação social, as repetições, os estrangeirismos, a pontuação exagerada das frases pelas conhecidas bengalas como o "portanto". Isto serviu de mote para dar a conhecer o trabalho de Valério Maúnde que, para além de apontar os tiques de linguagem que houve na comunicação social é também e sobretudo poeta e animador de um espaço chamado "Cais das letras". Lançado em 2015 nas redes sociais Facebook e YouTube com objectivo de partilhar a sua paixão pela literatura, o "Cais das letras" propõe nomeadamente leituras de textos de Bocage, Paulina Chiziane e também escritos seus. Antes de falar dos projectos que tem desenvolvido e nomeadamente do seu mais recente livro "Ausências, Intermitências e outras Incompletudes", Valério Maúnde começa por abordar o que o levou a escrever um artigo sobre a forma como se fala nos órgãos de comunicação social.
12/19/202217 minutes, 27 seconds
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Ceuzany, cantora cabo-verdiana, mostrou o "país das maravilhas" a Christophe Mae

A voz da cantora cabo-verdiana Ceuzany encantou o cantos francês Christophe Maé que a convidou a participar no seu novo single onde presta homenagem a Cabo Verde, a Cersária Évora e à morna. Em entevista à RFI, Ceuzany conta como este encontro teve um impacto na sua carreira. Christophe Maé, um dos maiores intérpretes da música francesa da actualidade, descobriu o país das maravilhas em Cabo Verde. Influenciado por Cesária Évora, o cantor francês seguiu-lhe os passos e deparou-se com a voz de Ceuzany, herdeira das mornas da diva cabo-verdiana. Ceuzany com uma carreira de mais de uma década também não diz não às coladeiras e ao funaná e destacou-se primeiro com o grupo Cordas do Sol, dedicando-se depois à sua carreira a solo. O convite para gravar a música “Pays des marveilles”, ou país das maravilhas em português, e o seu videoclip com Christophe Mae foi uma surpresa para Ceuzany, como descreveu em entrevista à RFI. "Eu não o conhecia, nem sabia como ele chegou até mim, mas ele disse-me que estava no carro a ouvir músicas de Cabo Verde, tipo Mayra Andrade, Cesária, das Cordas de Sol, do qual eu faço parte. Ele gostou da minha voz, procurou o meu manager para fazer esta união. Fui ver as músicas dele percebi que ele é muito famoso, gostei imenso e estou muito contente", disse a cantora. Esta música, que já conta com quase 400 mil visualizações no Youtube, já trouxe Ceuzany ao popular programa de televisão francês StarAcademy, rodeada por batuqueiras. É também este convite que a vai trazer já em 2023 a França para a tournée de Christophe Maé. Na sua carreira a solo, Ceuzany vai lançar um novo single e um novo álbum já em 2021 recheado de mornas, coladeiras e funaná, esperando que estas novas canções agradem "ao povo de Cabo Verde".
12/13/20229 minutes, 15 seconds
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Mindelo acolhe o "Cinema-Debate Amílcar Cabral" a partir desta quarta-feira

No âmbito do programa de celebração do Centenário de Amílcar Cabral que se assinala em 2024, a Fundação Amílcar Cabral, em parceria com a Fundação alemã Rosa Luxemburgo, promove a partir desta quarta-feira até ao dia 9 de Dezembro no Auditório do Centro Cultural do Mindelo, em Cabo Verde, o “Cinema-Debate Amílcar Cabral”. Durante este evento que é pensado para ser itinerante, vão ser promovidos debates e vão igualmente ser projectados 3 filmes alusivos à figura de Amílcar Cabral e à luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau: "O nascimento de uma Nação", um filme sueco datando de 1973, "Spell Rell", uma co-produção da Alemanha, Portugal, França e Guiné-Bissau elaborada em 2017 a partir de imagens de arquivo e "O Regresso de Amílcar Cabral", documentário de 1976 no qual trabalhou nomeadamente o realizador guineense Flora Gomes. Esta iniciativa proposta nomeadamente pela arquitecta angolana e comissária de exposições Paula Nascimento assenta igualmente no trabalho desenvolvido pela historiadora cabo-verdiana Ângela Coutinho. Em entrevista à RFI, esta investigadora ligada à Universidade Nova de Lisboa começa por evocar a génese deste projecto, a necessidade dos jovens abraçarem a História do seu país. Ao recordar que Amílcar Cabral, cujo activismo impulsionou a luta pela libertação de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, "é considerado como um dos maiores intelectuais de África do século XX", Ângela Coutinho refere que com este evento "pretende-se interpelar os mais jovens que em Cabo Verde, nos PALOP e em África em geral, têm estado um pouco alheados da História mais recente. As projecções servirão como forma de tentar cativar o interesse destes jovens e, para isso, contamos com equipas de vários académicos e artistas que têm reflectido sobre este legado". Ao evocar o volumoso acervo de documentação audiovisual que existe pelo mundo fora sobre Amílcar Cabral e a luta de libertação, a historiadora refere que "há muitas imagens que não têm sido divulgadas ao grande público. Alguns destes filmes, até hoje, ainda não foram traduzidos para a língua portuguesa. Durante estes dias, vamos fazer um resumo em língua portuguesa. Há ainda este trabalho a ser feito". Pouco antes do lançamento deste evento, a estudiosa admite que é a concretização de uma aspiração muito profunda. "Comecei a investigar este tema há quase trinta anos por iniciativa própria porque eu queria saber mais da minha história. Desde essa altura que tenho a ambição de partilhar as minhas reflexões e preocupações com os meus conterrâneos e concidadãos, porque é uma história que diz respeito a todos", refere Ângela Coutinho. O "Cinema-Debate Amílcar Cabral" arranca esta quarta-feira a partir das 18 horas locais no Auditório do Centro Cultural do Mindelo, na ilha cabo verdiana de São Vicente.
12/6/202218 minutes, 25 seconds
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Angola: Fenacult 2022 alusivo ao centenário de Agostinho Neto

Até ao dia 17 de Dezembro as portas do Teatro Elinga em Luanda, Angola, abrem-se no âmbito do Festival Nacional da Cultura (Fenacult) cuja edição deste ano é alusiva ao centenário de Agostinho Neto. No Elinga a actividade começou este fim-de-semana com a peça “A Errância de Caim”, uma adaptação da obra “Caim” de José Saramago, com encenação, cenografia e direcção de José Mena Abrantes.  Até ao dia 17 de Dezembro as portas do Teatro Elinga em Luanda, Angola, abrem-se no âmbito do Festival Nacional da Cultura (Fenacult) cuja edição deste ano é alusiva ao centenário de Agostinho Neto. No Elinga a actividade começou este fim-de-semana com a peça “A Errância de Caim”, uma adaptação da obra “Caim” de José Saramago, com encenação, cenografia e direcção de José Mena Abrantes, tal como explicou à RFI o director do Elinga-Teatro.  “No âmbito do centenário de nascimento do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, o Governo Provincial de Luanda e governos de outras províncias estão a levar a cabo um Festival Nacional de Cultura, o Fenacult, que já teve edições anteriores. Este ano, o Fenacult é dedicado precisamente ao centenário de nascimento de Agostinho Neto e para diversificar a apresentação de peças, o Elinga foi também escolhido para apresentar no seu espaço algumas das peças que já foram levadas a cena em alusão precisamente a Agostinho Neto. De Junho a Setembro, o Circuito Internacional de Teatro (CIT) levou a cabo 100 obras alusivas ao Presidente Neto em três províncias: Huíla, Bengo e Luanda.  Em Luanda, como há uma grande dificuldade de espaços de representação, o CIT pediu que o Elinga cedesse as instalações para a apresentação de 43 espectáculos, quase todos, dedicados à figura do Presidente Neto.  Entretanto, se assinala também o centenário de José Saramago e há algumas afinidades de biografia entre os dois, quisemos repor “A errância de Caim”, uma adaptação que fiz do romance “Caim” [de José Saramago] e explorar, precisamente, essa ligação de ambos que se dedicaram, toda a vida, a causas nobres, à luta por uma humanidade pacífica e de desenvolvimento.” Entretanto, no próximo dia 17 de Dezembro, o Elinga-Teatro fecha este festival com uma apresentação que se chama "8 Poetas no Poeta Agostinho Neto".  “Essa selecção de poemas também já tinha sido feita há alguns anos, chegámos a fazer esse recital num hotel aqui em Luanda com a participação de vários actores do Elinga. Entendemos repor esse recital minimamente teatralizado com oito poemas que são uma construção, uma montagem de poemas.   A minha selecção tem o poeta revoltado, o poeta solidário, o poeta da amizade, o poeta da esperança, o poeta do outro, o poeta do amor, o poeta do futuro e o poeta ele só. Portanto, em função destes temas foram seleccionados, montados e entrelaçados às vezes vários poemas para expressar a dimensão humana e literária do Agostinho Neto enquanto escritor.  Por exemplo, no termo da selecção eu escolhi um poema que para mim é o talvez o mais conseguido sobre Agostinho Neto, que é um poema de Arnaldo Santos que se chama “Canto a Um Homem que não era árvore”. Foi publicado logo a seguir à morte do Presidente Neto.”
11/30/20228 minutes, 38 seconds
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Pongo: “Foi uma luta para chegar aqui”

O público subiu ao palco para dançar “Wegue Wegue” e Pongo desceu até ao público para cantar “Uwa”. A cantora luso-angolana voltou a Paris, a cidade que relançou a sua carreira, depois de dez anos afastada dos palcos. Pongo esteve na sala La Cigale, a 18 de Novembro, para mostrar o seu novo trabalho, Sakidila, que significa obrigada. Uma gratidão quase mística pela força que a música lhe deu para realizar o seu sonho, enfrentar dificuldades e transmitir um exemplo de luta, sobretudo às mulheres. “Sakidila significa obrigada, gratidão, em kimbundo” começa por contar Pongo, horas antes de subir, mais uma vez, ao palco La Cigale, em Paris, que teve sala esgotada, a 18 de Novembro. “É sakidila, gratidão, por essa força, por conseguir chegar aqui e realizar um dos meus sonhos”, descreve. “Tenho gratidão pela luta e todo o caminho que eu fiz até aqui para conseguir lançar o meu primeiro álbum a solo, apesar de já ter tido dois EP’s, mas um álbum é aquela responsabilidade maior de qualquer artista”, diz a cantora e compositora. O caminho não foi nada fácil. A sua vida tem sido uma luta, desde a saída em criança de uma Angola em guerra, às dificuldades que passou em Portugal, até à conquista do seu espaço a solo no mundo da música. Aos 15 anos, Pongo foi a voz de uma canção que correu mundo e que ainda hoje deixa o público ofegante. Compôs e cantou Kalemba (Wegue Wegue) quando estava nos Buraka Som Sistema, mas depois desapareceu dos palcos durante mais de dez anos. Em 2018, Pongo regressa com um EP, Baia. Dois anos depois, lança o segundo EP, UWA, mas aparece a pandemia para atrasar o primeiro álbum que acaba por surgir em Abril de 2022 e se chama Sakidila. Numa das músicas, Começa, Pongo canta “Mesmo na elite avacalho, sou genuína não falho, dez anos depois eu comando”. “Durante dez anos estive em várias lutas diferentes, principalmente por ter este lugar que o Wegue Wegue me proporcionou desde o início da minha carreira, quando comecei com os Buraka. Mas ali não tive o reconhecimento e tive de lutar também pelos meus direitos de autor sobre a música. Isso levou dez anos e dez anos não é pouca coisa. Ainda assim, fui buscar forças onde nem imaginava que podia ter e por isso é que eu digo, de alguma forma, que acreditei em mim, não desisti daquilo em que eu acredito, principalmente a verdade, e vim até aqui. E claramente eu comando dez anos depois! [Risos] Isso é dizer que somos maiores que qualquer dificuldade e qualquer obstáculo que a gente tenha no nosso caminho. É não desistir e continuar a acreditar”, conta. E a culpa é da música: “A música é uma arte que sempre teve uma importância na minha vida de uma forma geral.” Por isso, Pongo reitera que “foi uma luta para chegar aqui”, algo que ecoa em Hey Linda, outro tema de Sakidila, quando canta “Hey Linda, tu sabes que és a diva, não deixes ninguém duvidar, és a primeira a acreditar”. “Hey Linda é mais uma oração. Todas as mulheres do mundo devem olhar ao espelho e reconhecerem-se, como todas as mulheres, fortes e as mais lindas. Não deixem que ninguém cause a dúvida sobre isso”, aconselha. O publico francês tem-na recebido calorosamente, tanto em salas de concerto, quanto em festivais e até no Palácio do Eliseu onde chegou a cantar, em 2019, a convite de Emmanuel e Brigitte Macron. A relação que tem com França é, por isso, “muito forte”, e o seu regresso aos palcos tem sido acompanhado por produtores franceses. “É uma relação de uma conexão muito profunda. Para já, foi um grande desafio para mim, a nível pessoal e profissional, ter recomeçado tudo a partir deste mercado francês e ter sido recebida com esse calor - que eu sinto como se fosse uma família – foi uma ponte importante de França para o mundo. De novo. Ou seja, é um recomeço, começo de França a rever todo o meu contacto com o mundo”, conta. No fundo, foi "um regresso aos palcos e um retomar da carreira a partir de França e de França encontrar toda a outra família do mundo inteiro”. Os EP’s Baia e UWA tinham mostrado que o kuduro - ou neo-kuduro como já classificou a imprensa francesa - continua a ser a sua grande referência. Sakidila segue o mesmo caminho, mas há muito mais, desde amapiano, baile funk, afrobeat, electro, reguetón e pop mais melódica. Ritmos de diferentes países que dão uma certa universalidade à sua música. Talvez para “cantar para Angola e para o mundo inteiro”, como diz em Wegue Wegue? A resposta é imediata: “Exacto, canto para Angola e para o mundo inteiro! A fusão de ritmos e culturas de todo o mundo é combustível, é o que mais me move.” Desde o lançamento de Sakidila, Pongo não tem parado, com concertos em Portugal, França, Alemanha, Noruega, Dinamarca, Reino Unido, Espanha, Holanda, Bélgica, Suíça, Canadá... Em Dezembro, vai a Angola. “Vou voltar à minha terra. Desde o 'recomeço’ será a primeira vez que vou a Angola. Vou tocar no Top Music Angola, é a gala do Music Awards angolano. Estou super, super feliz e mal posso esperar. Sakidila! Sakidila mundo! Sakidila todos que fazem parte desse reencontro e todos os que têm chegado! Só tenho a agradecer. Sakidila mundo!” Oiça a entrevista neste programa ARTES.     
11/22/202217 minutes, 32 seconds
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Grupo angolano Nguami Maka vai actuar em festival de jazz na Polónia

O grupo de música tradicional angolana Nguami Maka vai actuar a 23 de Novembro no Festival Jazz Topad, na Polónia. O quinteto, que celebra 20 anos de carreira, vai apresentar o novo projecto "Fragmentos" em que os instrumentos de raiz de Angola entram num diálogo de improvisações. Oiça aqui a entrevista ao líder do grupo Nguami Maka, Jorge Mulumba. RFI: O que significa a ida ao festival Jazz Topad, na Polónia? Jorge Malumba, Músico: É uma mais-valia porque os festivais têm vários olhos do mundo. É um encontro a que nós vamos, com vários artistas do mundo, mas também ali cada um deixa a sua impressão digital daquilo que faz a nível da música e cultura de cada país. Estamos a levar Angola para ver se aparecem outras propostas para outros festivais ou eventos em que a música angolana possa respirar. Os Nguami Maka são convidados para um festival de jazz que reúne tendências contemporâneas, mas são um grupo de música tradicional. O que é que vão levar a este festival? Para este festival, nós fizemos um projecto denominado “Fragmentos”. Fizemos peças no formato quinteto, que é a nossa formação enquanto grupo, mas também há quartetos, trio, duos e também peças com um indivíduo apenas no palco. São estes momentos que vamos apresentar. Nós criámos peças que dão relevância, por exemplo, à improvisação da execução dos instrumentos e isso é uma visão muito forte dentro do jazz. Nós temos instrumentos mais cingidos à percussão e o jazz tem, por exemplo, mais harmonias, violino, saxofone … Então, nessas peças que nós criámos, criámos uma leitura musical que faz todo sentido num palco de jazz. Temos uma peça, por exemplo, “O Olhar das dicanzas”, que são duas dicanzas a fazerem execuções de improvisação. A “Batucada agitação” que são dois batuques a fazer improvisação. Eu tenho momentos com kalimba, que é um instrumento africano. Faço vários solos, um passeio em torno de um instrumento, tudo com improvisação. São instrumentos tradicionais, como a dikanza, mas também há a puíta, lata, hungo, mukindu… Todos eles vão estar em palco? Sim, todos vão estar em palco e com a grande improvisação. São instrumentos tradicionais e especificamente angolanos? Sim, especificamente angolanos. O que nós estamos a fazer pode ser muito novo agora, mas todos esses instrumentos, antes de se agregarem aos grupos, eram executados por elementos solistas e só depois é que eles se envolveram nos conceitos de turma, carnaval, conjunto. Nós, ao pensarmos no projecto de Fragmentos, começámos logo a recuperar esses elementos. Há um tema que nós fizemos que é a “Homenagem ao Kamosso” que era um executante de hungo e conseguiu criar um público naquele período dos anos finais de 70, inícios de 80 e bocadinho perto de 90 e deixou a sua marca. Nós criámos vários solos de Kamosso , mas fizemos uma componente quinteto. Nós só pegamos nesses elementos e começámos a reconstruir coisas que não foram acabadas, coisas que ficaram em pedaços, voltar a construir e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a essas coisas. Ou seja, foram buscar raízes que já existiam para lhes dar um toque vosso, não é? Onde podemos ouvir este novo trabalho? Vai haver disco? Nós já temos duas peças gravadas que estamos a fazer circular para que as pessoas possam ouvir. Mas também, quando regressarmos, vamos fazer uma tournée por algumas zonas de Luanda, com o projecto Fragmentos. Estamos a pensar no Palácio de Ferro, na Casa da Cultura do Rangel, no Camões… O quinteto celebra 20 anos. Que balanço é que faz da carreira do grupo? Vinte anos de muita história, de momentos que passámos com muitas dificuldades. Não quer dizer que as dificuldades acabaram porque a vida é feita de dificuldades e são barreiras que temos de superar. Felizmente nós superámos, temos uma obra discográfica lançada em 2009, participação em vários concertos quer aqui, quer fora de Angola e todos eles foram bons e temos trabalhado cada vez mais para melhorar a nossa performance, quer individual, quer colectiva. Os 20 anos que nós celebramos, temos estado a reflectir muito na consistência, na resistência. Apesar de um elemento que faleceu em 2013, o grupo mantém-se sempre com a mesma dinâmica e dedicação porque não é fácil. É porque nós amamos, gostamos, temos uma paixão pela música de raiz, numa cidade em que, às vezes, a futilidade rouba a qualidade, mas nós temos estado a primar pela nossa qualidade, sem desprimor, sem chocar. Conseguimos, na verdade, fazer a nossa estrada e estar bem representados nesses 20 anos. Temos um público que nos apoia. Mas a grande reflexão desses 20 anos é começarmos a passar o testemunho para os mais novos, com ciclos formativos, ensinar a tocar os instrumentos todos que nós tocamos. Também dá aulas de instrumentos tradicionais, nomeadamente de dicanza... Sim. Eu dou aulas desse instrumento e faço também oficinas de quase todos os instrumentos. Mas, agora eu propus quinteto que temos de passar a formar - a começar pelo bairro a que nós pertencemos, que é o Marçal - e passar isso aos mais novos, começar a dar uma educação daquilo que são as nossas origens e raiz porque se não o fizermos agora, pode ser tarde depois. E se um dia nós não estivermos mais prontos, não conseguimos ter substituto. Então, estamos preocupados com isso em torno dos nossos 20 anos. Falou na palavra resistência. Como é que hoje está a música tradicional em Angola? A música tradicional de Angola está muito - será um termo pesado, mas eu vou usar – num estado péssimo. Ligo e estou constantemente a chatear os líderes dos grupos para fazermos mais coisas em prol da música tradicional porque eu, em 2002, decidi fundar o grupo Nguami Maka - depois de passar pelo grupo Kituxi que é dos maiores grupos - e, entretanto, as políticas do país mudaram completamente. Havia uma facilidade de os grupos tocarem nas instituições, irem para os palcos, irem para as actividades consulares fora de Angola. Mas toda essa política, em 2014, início de 2015, acabou. Então, os grupos deixaram de ter, por exemplo, contactos directos que terão feito e não criaram uma logística interna para continuar com as propostas musicais ou culturais. Então, deixaram de fazer parte das actividades consulares fora de Angola, das instituições que convidavam constantemente e de algumas actividades que eram criadas pelo ministério da Cultura, o Governo provincial ou a a direcção provincial da cultura. Tudo isso caiu e os grupos andam aí de rastos, completamente perdidos. Os grupos até têm dificuldade de ter redes sociais. Eu sou organizador do festival Balumuka e uma grande luta que nós tivemos foi ter acesso às biografias dos grupos. Isso acontece com grupos que têm mais anos que Nguami Maka, coisa que uma pessoa não consegue acreditar. Ou seja, é uma luta constante para manter viva a música tradicional angolana. É, é. Não há incentivos. Os grupos, por exemplo, não têm dinâmica de criar, por exemplo, alguma estrutura interna, conseguir algum meio para subsistência. É muito difícil. Sobretudo com a música tradicional que é quase olhada por algumas pessoas como enteada, não filha. 
11/14/202211 minutes, 5 seconds
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Dança Contemporânea de Angola chega a Paris

A Companhia de Dança Contemporânea de Angola apresenta, esta quinta-feira, na UNESCO, em Paris, o espectáculo "Isto é uma mulher?", das coreógrafas Ana Clara Guerra Marques e Irène Tassembédo. A peça é interpretada por homens que dançam e questionam o género, em mais uma criação que rejeita cristalizações de conceitos, corpos e identidades. A coreógrafa e directora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, Ana Clara Guerra Marques, conversou com a RFI sobre a história, a evolução, as dificuldades e a resistência da companhia que cumpre 31 anos em Dezembro e que se apresenta, pela primeira vez, em França. RFI : Quer começar por descrever-nos a peça que a Companhia de Dança Contemporânea de Angola apresenta em Paris ? Ana Clara Guerra Marques, directora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola: "A peça que nós viemos apresentar foi a última criação do CDC que é uma co-autoria entre mim e a coreógrafa Irène Tassembédo e chama-se 'Isto é uma mulher?'" E o que é "uma mulher" para a Companhia de Dança Contemporânea de Angola? "Esta peça não é uma peça feminista, é uma peça que pretende pôr as pessoas a pensar e a reflectir sobre algumas questões ligadas ao género, mas, também, sobre a condição da mulher. Acho que é interessante porque a companhia é masculina, são sete homens que dançam a mulher ou interpretam – não imitam, não reproduzem – interpretam." Ser interpretada por bailarinos, homens, não é contraditório? Quem deve falar de mulheres não são as mulheres? "Não. Nós não achamos nada disso e também achamos que mulher não se circunscreve a um aspecto físico e discutimos isso na peça. Toda a gente deve falar de toda a gente. Sobretudo, o que nos interessa aqui é a nossa condição de ser humano, ser mulher, homem ou qualquer outro género. Com tanto discurso feminista, no nosso país chegou-se a um exagero: põem mulheres porque é preciso ter mulheres independentemente da sua competência ou da sua não competência e são homens que fazem isto, que promovem, que nomeiam, que põem. Nós também não temos que estar sujeitas a esta magnanimidade masculina. Nós devemos aceder às coisas pelo nosso mérito e não por sermos mulheres. Esta peça anda muito à volta disto. Obviamente que existem situações em que as mulheres são altamente discriminadas em algumas culturas, mas também há outros géneros que também são discriminados. Tudo isto vem acima na peça. Para quem quiser ver." Além disso, as coreógrafas são mulheres. "São mulheres, mas são mulheres de fibra." Em termos de vocabulário plástico e de coreografia, como é essa dança? "A companhia é de dança contemporânea, inclusiva. A linguagem é uma linguagem mista porque são duas linguagens, duas coreógrafas. O nosso trabalho não pretende ser uma reprodução daquilo que estamos habituados a ver como sendo a dança contemporânea que se vê sobretudo na Europa, aquela forma de movimentar. Nós trabalhamos com os nossos bailarinos que têm uma formação diferente destes bailarinos daqui, ou seja, não têm uma formação convencional -  a formação é-lhes dada dentro da companhia. E, portanto, eles têm uma forma de mover, cada um deles. Obviamente que eles têm técnica e têm aulas de técnica, etc, mas  nós investimos no lado artístico deles e a linguagem é muito feita a partir dos corpos deles, dos movimentos que eles trazem e trabalhando isso, depois, com as coisas de cada coreógrafo." Como é que surge a apresentação na UNESCO? A Clara é membro do Conselho Internacional de Dança da UNESCO. É a partir daí que surge o convite ? "Não. A companhia também é membro, somos os dois, mas o convite foi feito pela nossa Embaixadora de Angola na UNESCO, a doutora Ana Maria de Oliveira, que conhece o trabalho da companhia, que aprecia bastante o trabalho da companhia, que está desde o início da criação da companhia - quando a companhia foi formada, ela era ministra da Cultura. É uma pessoa que tem vindo a acompanhar o nosso trabalho e tem um grande apreço. Convidou-nos no âmbito das comemorações da Independência de Angola e do Centenário de Agostinho Neto." Também há outra data redonda. Os 30 anos da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Que balanço faz? "Em realidade, nós vamos fazer 31 anos agora em Dezembro. Foi um percurso difícil, muito sofrido e continua a ser, como se diz no livro, de grande resistência, ou seja, o nosso país talvez não esteja ainda preparado para um trabalho desta desta natureza, com estas linguagens. Mas foi, ao mesmo tempo, um percurso que marcou a dança, marcou a mudança, marcou a diferença e continua a marcar a diferença num país que é, de certa forma, conservador em relação a estas propostas mais contemporâneas da arte. Tem sido uma grande luta, mas tem sido também um desafio. Nós podemos saldar como positivo. Apesar de, repito, de um caminho completamente tortuoso, completamente difícil, muitas vezes sem lugar para ensaiar, sem possibilidades para produzir. Mas nós somos lutadores e se achamos que é preciso fazer, que é preciso modificar, que é preciso pôr Angola no caminho do progresso, no campo das artes, então é isso que nós fazemos." Precisamente, vocês também apresentaram na Embaixada de Angola em França dois livros sobre a companhia, "Lugares Incorporados" e "Companhia de Dança Contemporânea de Angola - 30 Anos de Resistência". Olhemos para este título - "30 anos de resistência". É preciso resistir para se ter dança contemporânea em Angola ? "É. É preciso resistir para conseguir levar um trabalho novo, propostas às quais as pessoas não estão habituadas e que, muitas vezes, são rejeitadas porque as pessoas, muitas vezes, pensam ou acham que o nosso trabalho não é suficientemente africano para representar um país africano. Ou seja, há uma certa confusão, há uma certa falta de cultura, há uma certa ignorância, uma certa falta de sensibilidade porque as pessoas, sobretudo a nível institucional, são muito progressistas em relação a outros aspectos mas, de repente, quando chega a parte das artes e, sobretudo, da dança, pensa-se que a dança angolana tem que ser exclusivamente a dança patrimonial, ou seja, nós devemos apenas mover-nos no terreno etnográfico e das danças tradicionais e populares. Nós temos sempre que resistir. Esta palavra resistência tem também a ver com o facto de nós resistirmos a este movimento, digamos, quase contra o nosso trabalho, mas fazendo um novo, apresentando um novo. É, no fundo, um trabalho de vanguarda, se é que ainda podemos utilizar esta palavra numa altura destas, mas é neste sentido também." É um trabalho de vanguarda, um trabalho contemporâneo, mas, ao mesmo tempo, que se inspira em danças tradicionais, em danças populares angolanas… "Às vezes. Nós temos duas linhas de criação: por um lado, intervenção social e esta é a nossa preferência, uma companhia que intervém, é quase um trabalho político; e também temos esse trabalho baseado no nosso acervo patrimonial, não apenas nas danças, em que eu utilizo o trabalho de investigação que eu tenho feito justamente neste campo etnográfico. Nós trabalhamos nestas duas vertentes, digamos assim." A dança inclusiva é algo fundamental no seu trabalho também. "Sim. Angola, com as várias guerras e sucessivas guerras, tem um grande número de pessoas mutiladas e com deficiências, etc, e há alguma discriminação também em relação às pessoas portadoras de deficiências. Nós achamos que é importante mostrar que um corpo diferente pode dançar também e num país como o nosso, em que há realmente esta discriminação, a companhia tem feito um trabalho importante nesse sentido, mostrando realmente que a diferença não é um problema, não é uma limitação." A companhia contribuiu para alterar a história da coreografia e da dança em Angola? "Completamente, completamente. Nós trouxemos a dança contemporânea, a dança inclusiva, a utilização de espaços não convencionais. Nós trouxemos realmente novas linguagens para um panorama que tinha apenas as danças populares, as danças sociais, naturalmente, as festas, etc, e o acervo tradicional. Não havia mais nada. Mesmo da época colonial para depois da Independência, não passou nenhuma estrutura. Não havia no tempo colonial nenhuma companhia de dança em Angola, havia de teatro mas não havia de dança. Raramente éramos visitados por companhias de dança. Eu lembro-me de lá ter ido a Gulbenkian nos anos 70, eu era miúda, andava na escola de dança já. Nós inovámos também. Trouxemos o regime de temporadas, o profissionalismo mesmo em dança porque os bailarinos são profissionais, são formados, dominam linguagens, dominam léxicos. Tudo isto foi realmente completamente inovador. Eu acho que também daí, às vezes, há algum medo de assumir este colectivo e o nosso trabalho, sim." Porque no fundo, a companhia fundada em 1991 foi a primeira companhia profissional em Angola. E em África ? "Foi das primeiras em África nascidas no continente. Havia, e continua a haver, muitos coreógrafos africanos que estão radicados em Paris, na Alemanha, aqui e ali, e têm as suas companhias e fazem o seu trabalho. Mas, a surgir no continente, a nossa deve ter sido a quarta ou a quinta companhia e em Angola, sim, foi a primeira e neste momento é a única companhia profissional que Angola tem. Os bailarinos vivem da sua profissão." Conseguem sobreviver da dança? "Sim, sim, sim. Dedicam-se, com exclusividade ao trabalho da companhia, trabalham seis, sete, oito horas por dia. Ou seja, é um trabalho profissional." Em termos de apresentações, limitam-se a Angola ou conseguem exportar o vosso trabalho? "Nós conseguimos fazer 'tournées'. De há uns anos para cá, nós fazemos, pelo menos, uma tournée por ano e fazemos as temporadas em Angola. É difícil fazer digressões dentro de Angola. Quando conseguimos apoios, preferimos trazer o trabalho cá fora, preferimos divulgar e internacionalizar o nosso trabalho." Quantas peças têm no vosso repertório ao longo destes 31 anos? Quais as que mais marcaram a  companhia e, até, Angola? "Se nós pensarmos que desde 1991 até agora fizemos, pelo menos, uma peça por ano, temos 0 peças mais ou menos. É difícil escolher. Imagina-te com vários filhos, não podes gostar mais de um do que de outros! Em relação ao público, tem graça, porque as peças mais críticas, mais agressivas, digamos assim, são as peças que marcam mais o público. Obviamente que nós somos um produto do público também. 'Palmas, por favor!' foi uma peça que marcou bastante. O 'Agora não dá! Tou a bumbar…' também porque era uma crítica cheia de humor porque essa é uma das características do nosso trabalho. 'O Homem que chorava sumo de Tomates' foi mesmo, mesmo muito forte. O 'Ceci n’est pas une porte' foi outra peça em que não havia teatros – e não há - então nós construimos uma série de caixas e encostámo-las a uma parede e os bailarinos dançaram nessa parede de caixas. Foi na altura em que prenderam 15 activistas, portanto, eles estavam confinados numas caixas, não podiam falar, não tinham espaço..." Uma mensagem política, portanto? "Sempre. Sempre. Eu divido, claramente, o entretenimento da arte. Já que existimos, os artistas, não temos que existir para o deleite de pessoas. Nós devemos existir para intervir, para estar presente e para dar o nosso contributo para mudar."
11/9/202213 minutes, 27 seconds